O globo, n. 31361, 18/06/2019. País, p. 4

 

As armas de cada um

Bruno Góes

Daniel Gullino

Gustavo Maia

Jussara Soares

18/06/2019

 

 

Bolsonaro apela com tese de risco autoritário, e Senado decide hoje se derrubará decreto

Sob forte pressão do presidente Jair Bolsonaro, o Senado deve decidir hoje se mantém ou derruba os decretos editados em maio para flexibilizar a posse e o porte de armas. Ao apelar para que parlamentares mantenham a medida, Bolsonaro afirmou ontem que armar a população é uma forma de impedir governos autoritários. A declaração desagradou políticos de todos os lados, do DEM ao PT.

Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou a derrubada dos decretos, por 15 votos a 9. Caso a decisão seja mantida pelo plenário, ainda terá de ser confirmada pela Câmara.

O decreto também será analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente da Corte, Dias Toffoli, marcou para o dia 26 de junho o julgamento das cinco ações que questionam a legislação.

Durante uma cerimônia ontem no Palácio do Planalto, o presidente fez referência ao que chamou de “batalha do decreto das armas”:

— Senadores, deputados, temos a batalha do decreto das armas, vamos lutar lá (no Congresso) porque quem quer desarmar o povo é quem quer o poder absoluto. E eu quero que o povo, o cidadão de bem, tenha o direito à legítima defesa.

Bolsonaro já havia expressado ideia semelhante no sábado, durante cerimônia militar em Santa Maria (RS), ao afirmar que as armas são importantes para evitar que “tentações” passem por governantes. Mais cedo, havia publicado em suas redes sociais um pedido para a população cobrar dos senadores a manutenção dos decretos.

"Só exérciro dá golpe"

Senadores ouvidos pelo GLOBO criticaram a fala de Bolsonaro. O líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), considera que a ideia é uma forma do Estado se eximir de sua responsabilidade:

— O dever do Estado é prover a população de segurança pública. A impressão é que o governo está querendo transferir isso para que as pessoas se armem e se autodefendam.

Para o líder do PT, Humberto Costa (PE), trata-se de incentivo à formação de “milícias”, o que configura crime de responsabilidade:

— Isso é um crime. Se nós estivéssemos vivendo em um momento de normalidade do Brasil, isso iria se caracterizar como crime de responsabilidade. É um absurdo isso, defender a formação de milícias com objetivos políticos.

Líder do PSD, Otto Alencar (BA) considera que a preocupação de Bolsonaro não faz sentido:

—Só quem pode dar golpe militar é o Exército.

A fala de Bolsonaro também repercutiu entre deputados. Integrante da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) discorda do presidente. Desde que Bolsonaro editou o segundo decreto que flexibiliza o uso de armas, o parlamentar tem se colocado contra o discurso do Planalto:

— Respeito a opinião do presidente, mas discordo frontalmente; no Brasil não existe mais espaço para regime totalitário.

Para o líder do PSD, André de Paula (PE), essa é uma opinião já vocalizada pelo presidente da República desde a eleição. Ele ressalta, entretanto, que a Câmara ainda deve se debruçar sobre o assunto.

— Acho que ele dá a opinião dele. Eu respeito. Acho que a Câmara vai discutir (o assunto do armamento) e vai tratar da forma mais responsável possível. Essa é a opinião do presidente. Ele tem direito, inclusive materializou a opinião ao editar o decreto. Não é nenhuma surpresa. Nós sabemos como o presidente pensa. A maioria do povo inclusive sabia quando o escolheu — diz André de Paula.

Líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ) já recorreu ao STF para tentar anular o decreto que flexibiliza o porte de armas. Molon diz que é contrário à posição de Bolsonaro:

— Se quisesse fortalecer a democracia, Bolsonaro deveria começar reforçando as instituições, e não desprezando-as, como faz. Nenhum tipo de conflito deve ser incentivado por um chefe de Estado. Isso é flertar com o autoritarismo. Seu comportamento, portanto, mostra que quem coloca em risco nossa democracia é ele.

Na noite de ontem, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi à tribuna e utilizou argumentação semelhante a de seu pai:

— Eu queria dizer que nós temos que garantir, sim, o acesso às armas às pessoas para que amanhã, se tivermos um regime como o de Lula, que junto com os mensaleiros aprovou o desarmamento, a gente aqui não fique sob os desmandos de um governo autoritário.

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do ministro da Justiça, Sergio Moro, e da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em evento no Palácio do Planalto: declarações sobre armas foram criticadas por senadores

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‘Liberdade se garante com democracia’, diz professor

18/06/2019

 

 

Para especialistas, estratégia do presidente lembra argumentos da extrema-direita americana e é aceno a convertidos

Cientistas políticos e um professor de Direito criticaram o presidente Jair Bolsonaro por defender que a população precisa se armar para impedir que governantes assumam o “poder de forma absoluta”. Para os especialistas, o presidente novamente tenta dialogar com a parcela mais fiel e radical de seus apoiadores.

— Qualquer país civilizado está mais preocupado em desarmar a população e construir relações de confiança do que preparar seu cidadão para guerra. É antiiluminista — afirma o cientista político Marco Antonio Teixeira, da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Teixeira acredita que a declaração seja uma reposta à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado que se manifestou contra o decreto de Bolsonaro que flexibiliza a posse de arma.

— É uma estratégia do governo Marco Antonio Teixeira, cientista político da FGV de tentar mobilizar o grupo mais próximo e pressionar o Senado.

Oscar Vilhena, professor da FGV Direito SP, diz que o presidente errou e apelou a um argumento da extremadireita americana para defender as armas.

—A frase é profundamente equivocada porque liberdade se garante com a democracia e com respeito ao estado de direito e não com o armento da população.

Por outro lado, Antônio Testa, cientista político da Universidade de Brasília (UnB), minimizou a fala.:

— É um discurso populista, apenas retórico, que não tem impacto nenhum.

Testa explica que não está difundida na população a ideia de que o regime democrático está sob ameaça.

— Uma coisa é defender armar o povo contra os criminosos porque o sentimento é de insegurança. Outra coisa é fazer isso usando a possibilidade de governos totalitários. O Brasil nem de longe vive enfrenta esse risco. As instituições são fortes —afirmou.

Testa é contrário ao Estatuto do Desarmamento e colaborou como consultor do governo de transição.

Eduardo Grin, também da FGV-SP, disse que a declaração reúne dos dois pilares do pensamento bolsonarista:

— O primeiro é a ideia de que a democracia não está apta a resolver conflitos e que a solução é o cidadão agir individualmente. A outra ideia, bastante recorrente, é a lógica bélica, de que sempre há um inimigo a ser combatido.