O globo, n. 31100, 30/09/2018. País, p. 12

 

Constituição: 30 anos

Lydia Medeiros

30/09/2018

 

 

Há 30 anos, o Brasil mudou sua História. Uma nova Constituição sepultou um ciclo ditatorial de 21 anos e restabeleceu a democracia. Foi a primeira carta republicana com foco no indivíduo, deixando o Estado em plano secundário. Mas, para muitos, ela já nasceu com “olhos voltados ao retrovisor”, porque, já à época, havia uma tendência mundial à revisão do papel do Estado na economia e no desenvolvimento social. Passadas três décadas, essa questão segue dominando o debate político brasileiro.

Agora, preparam-se mudanças. Durante a campanha, os candidatos à Presidência apresentaram propostas que dependem de alterações na Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988. Há consenso sobre a necessidade de alterações, a começar por uma reforma tributária, limitando os serviços do Estado ao que a sociedade se dispõe a pagar por eles. As propostas convergem também para um novo sistema previdenciário e uma reforma política. Nas urnas, 143 milhões de brasileiros começam a decidir esse rumo.

FRANGALHOS

A Constituição já foi modificada 99 vezes, e tramitam no Congresso outras 1.735 propostas de emendas. A Carta, promulgada por Ulysses Guimarães, é hoje alvo de críticas dos próprios autores, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim. Influentes constituintes, eles defendem reformas para abrir caminhos à saída dos impasses econômicos e políticos.

— O que montamos em 1988 está em frangalhos. Vemos hoje a crise daquele sistema. Um ciclo político acabou e ainda não há outro no lugar. Será preciso liderança para mudar — afirma Fernando Henrique, um dos relatores da Carta. José Sarney, o presidente que convocou a Constituinte, disse à época que a Carta deixaria o país ingovernável. Acredita que foi profético:

— Criamos um problema que o país terá muita dificuldade de superar. Uma geração só será pouco. Sem mexer nas estruturas do Estado, esse processo de desintegração vai continuar. E tudo isso, a meu ver, vem da Constituição.

— Tínhamos uma preocupação fundamental, a liberdade — lembra Fernando Henrique.

—E a Constituição assegurou a liberdade. Muitos dizem que dá mais direitos do que deveres. É da natureza das constituições. Nasceram para limitar o poder do rei. Aqui, talvez, tenhamos exagerado nas obrigações ao governo sem dar os meios —constata FH. Para sair da crise, o constituinte mineiro e ex-ministro da Previdência Roberto Brant acredita que será necessário revisar a organização econômica e a do Estado. Mudanças na Previdência, diz, são incontornáveis, e deveriam tratar de temas como o direito adquirido, hoje base de conflitos judiciais com o Estado:

—Esses direitos são contra a sociedade. O dinheiro acabou. O Estado não existe,são as pessoas que pagam pelo Estado, principalmente os pobres. Achava-se que era preciso inscrever na Carta todas as garantias. Corporações privadas e estatais levaram a melhor. Da advocacia à magistratura, lembra Jobim, todos queriam pegar um pedaço do Estado. Para FH, o espírito corporativo é parte da matriz cultural do país:

— Prevalece a ideia de que é preciso ter acesso a um fundo público. As corporações perceberam isso.

O país tem cerca de 17 mil sindicatos. A Inglaterra, 250. Por quê? É uma carta-patente. Dá domínio territorial de uma categoria e acesso a fundos. Desse ângulo, os partidos viraram quase corporações. A maioria, diz o ex-constituinte José Serra, queria um “estado de bem-estar”, como se as leis bastassem para resolver problemas: — Esquerda e direita são populistas. A maioria dos parlamentares ainda integram a “Frente Única Contra o Erário”, a maior e mais disciplinada no Congresso.

ABISMO NO COFRE

Negociar mudanças que podem reduzir o rombo nas contas públicas será a maior tarefa política do próximo presidente. A dificuldade será obter consensos com 25 partidos no Congresso. Otimista, Jobim prevê a redução de cerca de um terço no número de legendas, a partir desta eleição. A reforma política deve ir além, diz Fernando Henrique, e instituir o voto distrital:

— O voto uninominal e proporcional é aberrante. Quem é o eleitor no Brasil? Não é o cidadão. É a organização, o clube, a empresa, a igreja, a prefeitura. O partido, eventualmente. Quando o representante é eleito, serve a quem o elegeu. A força da Constituição era o cidadão, tanto que, nos primeiros artigos, estão os direitos e garantias individuais, sintetiza Paulo Delgado, ex-constituinte. Para ele, esse espírito foi traído:

—A energia da Constituição estimulava o iluminismo para dar autonomia à sociedade. Mas aí o Estado capturou a sociedade. Por isso aumentou o número de partidos e sindicatos. Há tantos intermediários entre Estado e sociedade que deu na crise fiscal. Ficou um texto permeado de dúvidas sobre defeitos e virtudes do capitalismo, observa:

— Trinta anos depois, ainda há uma cegueira à esquerda, que acha que o capitalismo não tem virtude, e há uma má fé à direita, que não vê defeito no mercado. A única coisa homogênea no Brasil é a ideia errada sobre o capitalismo. Mudar a partir do ano que vem, acham esses ex-constituintes, é importante para pavimentar o futuro.

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As caras do Brasil em 1988 e hoje

30/09/2018

 

 

Envelhecimento
Doboru a parcela de idosos

A população brasileira cresceu e envelheceu. A rápida transição demográfica, com a queda forte no número de filhos, reduzindo o tamanho das famílias, e a revolução nas cirurgias cardiovasculares, diminuindo a mortalidade na faixa de 50 anos ou mais, fizeram dobrar a parcela de idosos nos últimos 30 anos. A faixa de 60 anos ou mais subiu de 7,2% para 14,7%. Na base da pirâmide etária, foi o oposto. A população de zero a 17 anos representava 41,6% em 1988. Atualmente, são 25,3%. O brasileiro também está vivendo mais. No ano da Constituição, a esperança de vida ao nascer era de menos de 66 anos. Em 2018, subiu para 76, dez anos a mais. A mortalidade infantil caiu drasticamente: de 50,8 mortes entre mil nascidos para 14 por mil nos dias de hoje.

Avanço feminino

 

Mudança no status social

As últimas três décadas consolidaram a presença da mulher no mercado de trabalho, com avanço salarial. Apesar de ainda ganhar 77,1% do que recebe o homem, a situação era bem pior em 1988: o salário dela sera ametade do rendimento do homem.

Isso mudou o status da mulher dentro das famílias. Atualmente, 44% da renda dos domicílios vêm delas. Assim, em 41,4% dos lares, apessoa der eferênciaéa mulher, mais que o dobro de 1988, que era de 19,9%. Hoje, mais de 50% das mulheres estão no mercado de trabalho. Em 1988, eram 38,7%. Essa inclusão no mercado foi um dos motivos citados por especialistas para a redução no número de filhos. Nos anos 1980, tinha-se em média quatro filhos, hoje não chega nem à metade: 1,77 por mulher e caindo.

Trabalho

 

Mais proteção e mínimo maior

Apesar de a taxa de desemprego estar alta nos dias de hoje, a situação dos trabalhadores melhorou no período da redemocratização. O salário mínimo praticamente dobrou em termos reais (descontada a inflação), passando R$ 587,43 para R$ 954. Em 1988, vivíamos tempos de inflação alta, o que corroía os salários, mas diminuía o custo do trabalho para os empregadores e de demissões, fazendo a taxa de desemprego ser mais baixa, mesmo em períodos de estagnação. O desemprego em 1988 atingia 4,9% da força de trabalho, índice muito inferior aos 12,1% de hoje. Uma parcela maior dos trabalhadores ganhou proteção. Mesmo após dois anos de recessão, há mais empregados com carteira assinada, e a contribuição para a Previdência aumentou.

Educação

 

Analfabetismo caiu peIa metade

Um dos maiores avanços sociais das últimas décadas foi na escolaridade da população. A taxa de analfabetismo, que chegou a ser de 22,3% da população em 1981, baixou para 18,5% em 1988. Hoje, 7,2% da população de 15 anos ou mais não sabe ler e escrever.

Em 1988, 19% da população de mais de 10 anos não tinham instrução ou estudaram por só um ano. Hoje, a taxa é de 7,2% e quase 100% das crianças de 7 a 14 anos estão estudando. Entre 4 e 5 anos, supera os 90% de presença na educação infantil. Esse avanço educacional no período ajudou a reduzir a desigualdade de renda a partir de 2001 no país, uma das maiores no mundo. O desafio atual é melhorar a qualidade e impedir a evasão dos jovens.

Nos Iares

 

Mais serviços e eIetrodomésticos

Os lares brasileiros ficaram mais equipados, e o acesso aos serviços públicos deu um salto nos últimos 30 anos. Em 1988, somente 74,9% dos domicílios tinham luz elétrica. No ano passado, praticamente foi universalizado o acesso, com 99,8% ligados à rede. Água encanada também chegou a mais casas. Atualmente está em 85,7% dos domicílios; em 1988, só 70,9% tinham o serviço. Os eletrodomésticos ficaram mais presentes. A tecnologia e a universalização desse tipo de bem fizeram mudar os itens pesquisados pelo IBGE. Saíram fogão, rádio e filtro de água. Entraram vários modelos de televisão, computador, carro e moto. A geladeira e a TV estão em praticamente todas as casas. Há 30 anos, estavam em 70% dos domicílios.

Estabilização

 

Inflação contida e crescimento baixo

A economia brasileira deu uma guinada desde a Constituição. A inflação, que chegou a quase 3.000% no início dos anos 1990, está em 4,19%. Uma batalha que parecia impossível de vencer. Em 1988, o Brasil ainda vivia a ressaca do Plano Cruzado. Com o congelamento de preços em 1986, a economia crescera mais de 7%. Dois anos depois, veio a estagnação. Situação que voltamos a viver agora, só que depois de dois anos de recessão, uma das mais profundas da História. Crises no balanço de pagamentos (nossas contas com o mundo) eram uma constante no Brasil. O remédio era sempre provocar recessão para diminuir as importações e crescer exportações, para aumentar a entrada de dólares. Hoje somos credores externos. Temos US$ 382 bilhões de reservas.