O Estado de São Paulo, n.45859, 09/05/2019. Metrópole, p. A13

 

Decreto amplia porte de arma para 19 categorias e é contestado no STF

09/05/2019

 

 

À disposição. Especialistas criticam relação de profissões apresentada e a presunção de veracidade na hora de declarar a necessidade de ter a arma

O decreto do presidente Jair Bolsonaro que facilita porte de arma de fogo para uma série de 19 categorias, entre elas políticos, caminhoneiros e moradores de área rural – e não apenas para um grupo restrito, como foi anunciado anteriormente –, é questionado por juristas e se tornou alvo de ação no Supremo Tribunal Federal (STF). O principal argumento é de que, em vez de regulamentar o porte, a regra ataca diretamente o Estatuto do Desarmamento, lei federal de 2003 que foi aprovada pelo Congresso.

Ao anunciar o Decreto 9.785, anteontem, Bolsonaro afirmou que seriam incluídos atiradores esportivos, caçadores e colecionadores (CACs), além de praças das Forças Armadas – o que daria cerca de 255 mil pessoas. O texto final, entretanto, que só foi publicado ontem no Diário Oficial da União, contempla diversas outras categorias – e cerca de 19,1 milhões de pessoas poderão ter acesso facilitado ao porte, segundo estimativa do Instituto Sou da Paz.

Entre os incluídos estão advogados, agentes penitenciários, conselheiros tutelares e jornalistas que atuam em cobertura policial. Ontem, Bolsonaro voltou a defender essa política em evento no Rio. “Tudo o que podia ser concedido por decreto, nós o fizemos.”

Para o jurista Wálter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e pesquisador de Segurança Pública, porém, seria ilegal estabelecer no decreto quais profissões têm direito ao porte. “Ao relacionar as profissões, a obrigação de demonstrar a efetiva necessidade da arma (critério estabelecido no Estatuto do Desarmamento) fica afastada”, afirma. O outro ponto ilegal, segundo ele, seria a presunção de veracidade na hora de declarar necessidade de ter arma. “No Direito brasileiro, só atos da administração (pública) têm presunção de veracidade. Aumentando isso, (o presidente) passa do poder regulador dele.”

“Esse decreto não regulamenta, ele cria regras novas”, critica o professor Cláudio Pereira de Souza Neto, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PUC-SP), o professor Cláudio Langroiva também afirma que Bolsonaro não poderia se valer de decreto para tratar de temas tão abrangentes, como venda de armas e munição. Segundo ele, nos pontos em que o decreto contraria o Estatuto, a lei deve prevalecer.

“Esse tipo de ação é infeliz porque toma um papel do Legislativo”, diz Langroiva. “Essas incompatibilidades, infelizmente, muito provavelmente acabarão decididas no Judiciário.”

Apoiador do governo, o senador Major Olímpio (PSL-SP) discordou. “O porte de arma continua sendo regrado pelo Estatuto do Desarmamento. Eu vi como um avanço (a retirada da justificativa de necessidade).”

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) defendeu, em nota, a revogação do trecho que permite aos profissionais de imprensa portarem arma. Já o presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de São Paulo (Aprosoja), Gustavo Chavaglia, disse que o decreto vai ajudar os produtores rurais a se defenderem de roubos e furtos.

STF e Moro. O partido Rede Sustentabilidade entrou com uma ação no STF contra o decreto. Foi a 29.ª vez que o Supremo Tribunal Federal foi acionado para barrar medidas do governo Bolsonaro, aponta levantamento feito pelo Estado.

Para a Rede, o decreto é um “verdadeiro libera geral” e “põe em risco a segurança de toda a sociedade e a vida das pessoas”. “Não houve discussão com a sociedade, consulta pública do decreto ou qualquer outra medida afim”, afirma. Ainda segundo o partido, a regra vai favorecer “alguns poucos abastados que podem pagar para se armar até os dentes”. “Os pobres continuarão desarmados e à mercê da violência urbana, porque o governo não possui para a maior parte da sociedade nenhum projeto de segurança pública”, diz.

A consultoria legislativa da Câmara dos Deputados também prepara estudo de constitucionalidade do decreto. Segundo o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o pedido é padrão. “Para todo decreto presidencial, há uma análise de constitucionalidade”, disse.

Ainda ontem, em audiência na Câmara, o ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, se eximiu de dar explicações, apesar de subscrever o decreto. “É política do presidente da República e corresponde a uma promessa eleitoral”, afirmou. O ministro indicou, ainda, que houve “divergências”, quando questionado se assinou sem avalizar o conteúdo.

No Senado, o líder da minoria, Randolfe Rodrigues (RedeAP), apresentou um projeto de decreto legislativo que cancela os efeitos do decreto presidencial. E o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, rebateu os argumentos contrários. “Todo mundo que votou em Bolsonaro votou sabendo da sua posição de total respeito à vida, de garantir um instrumento, que são as armas de fogo, que hoje não existem nas mãos dos cidadãos ordeiros, para que pudessem defender suas vidas, famílias, propriedades.” / ANA PAULA NIEDERAUER, BRENO PIRES, BRUNO RIBEIRO, CAMILA TURTELLI, DENISE LUNA, DANIEL WETERMAN, FELIPE RESK, JULIANA DIÓGENES, LUCI RIBEIRO, RAFAEL MORAES MOURA e TULIO KRUSE

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Nova regra dá acesso a armamentos mais potentes 

09/05/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Equipamentos restritos a policiais e membros das Forças Armadas poderão ser usados por aqueles que obtiverem o porte

Com o decreto de Bolsonaro, armamentos e munições que antes eram restritos a policiais e membros das Forças Armadas agora também podem ser usados ou adquiridos por quem tiver o porte. Entre os itens liberados há pistolas .40, .45 e 9 mm, além de carabina .40 e espingarda de calibre 12.

O texto do decreto altera a regulamentação anterior e modifica critérios técnicos para a classificação de armas como de “uso permitido”, “restrito” ou “proibido”. Na prática, todas as pessoas que obtenham porte passam a poder ter acesso a armamentos mais potentes.

O regulamento de agora permite aquisição de armas de cano curto, semiautomáticas ou de repetição, que não atinjam energia cinética superior a 1.620 joules. Na regra anterior, o teto de energia do disparo era de 407 joules. O novo limite abarca pistolas e carabinas .40, armas usadas pelas Polícias Militar e Civil, e também munições 9 mm, o calibre utilizado pelo Exército Brasileiro.

Para o coordenador do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, a medida “inverte a lógica de que o Estado, para exercer controle, deve ter poder de fogo maior”. “Hoje, um patrulheiro da PM anda só com uma pistola .40, então você vai poder ter casos em que o cidadão vai estar mais armado que a própria polícia”, afirma. “Isso pode ter impacto, até mesmo, para vitimização dos policiais.”

Já o senador Major Olímpio (PSL-SP) acredita que a mudança trará mais segurança para os usuários e diminuirá risco de acidentes. “Isso não tira competência das polícias nem capacidade de força”, diz.

Segundo o senador, os calibres que foram liberados teriam maior “poder de parada” e seriam menos propensos a perfurações, comparado aos que já eram de uso permitido. “As armas serão usadas para defesa e para rechaçar agressões injustas, com menor risco de atingir outras pessoas.”

Críticas. Uma vez classificada como de uso permitido, o limite para compra de cartuchos também sobre de 50 para 5 mil por ano. Especialistas, no entanto, usam pesquisas que apontam a relação entre o número de armas legais com o número de armas ilegais para criticar a medida. “Quanto mais gente acessa, mais o crime vai acessar”, afirma Langeani.

“O presidente e os parlamentos não aceitam evidências nem pesquisas que mostram que, onde há mais armas, há mais mortes”, diz o coronel da reserva da PM José Vicente Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. “Em períodos que houve liberação de arma, foi quando a taxa de homicídios cresceu 8% ao ano.”/F.R.