O Estado de São Paulo, n. 45895, 14/06/2019. Metrópole, p.A17

 

Supremo criminaliza homofobia, mas mantém direito à manifestação religiosa

 

Rafael Moraes Moura 

02/06/2019

 

 

 

 

Justiça. Por 8 votos a 3, Corte equiparou discriminação contra homossexuais, transexuais e até heterossexuais identificados pelo agressor como LGBTs a racismo; ministros do STF veem omissão do Congresso. Presidentes da Câmara do Senado criticam

Por 8 votos a 3, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem enquadrar a homofobia e a transfobia como racismo. Dessa forma, os ministros do Supremo entenderam que a legislação sobre racismo, em vigor desde 1989 no País, também deve ser aplicada para quem praticar condutas discriminatórias homofóbicas e transfóbicas.

Essas condutas podem ter como alvo homossexuais, transexuais ou até heterossexuais que eventualmente sejam identificados pelo agressor como LGBTs. Isto é, vale para casos semelhantes ao do pai e do filho agredidos em 2011 na Exposição Agropecuária Industrial e Comercial em São João da Boa Vista (SP) por estar abraçados.

O tribunal também fez ressalvas para deixar claro que a repressão contra essa conduta não restringe a liberdade religiosa. Fiéis, pastores e líderes religiosos têm assegurado o direito de pregar suas convicções, desde que as manifestações não se convertam em discursos de ódio, incitando hostilidade ou violência contra LGBTs. Um pastor, por exemplo, pode dizer que a homossexualidade é pecado, mas se defender a violência contra homossexuais a postura pode ser enquadrada como crime de racismo.

A lei de racismo prevê penas de 1 a 5 anos de reclusão para quem negar emprego, impedir acesso ou recusar atendimento em hotéis, restaurantes, bares, estabelecimentos comerciais ou impedir o casamento ou convivência familiar e social para pessoas por raça ou cor. A decisão do STF, considerada histórica por membros da Corte, servirá de baliza para orientar as diversas instâncias da Justiça. O tribunal dedicou seis sessões plenárias ao tema, no julgamento mais longo até aqui nos nove meses da presidência do ministro Dias Toffoli.

Para o ministro Gilmar Mendes, a orientação sexual e a identidade de gênero “devem ser consideradas como manifestações do exercício de uma liberdade fundamental”. Segundo ele, “a realidade demonstra ostensivamente que a ausência da criminalização de atos de homofobia e transfobia acaba contribuindo para restrições indevidas de direitos fundamentais e para um quadro generalizado de discriminação.”

Não há números oficiais sobre os crimes – e até as vítimas falam em subnotificação (veja acima). Em 2008, quando o Grupo Gay da Bahia era a única entidade a registrar mortes, foram 58 casos, que subiram para 68 em 2009, 99 em 2010, 128 em 2012, 134 em 2014 e 144 em 2017.

Divergência. Na Corte, o debate teve divergências. Dos 11 ministros, 10 votaram para declarar omissão do Congresso ao não ter aprovado até hoje lei sobre o tema – foi contrário o ministro Marco Aurélio. Quanto à criminalização, oito votaram para que as condutas homofóbicas e transfóbicas sejam enquadradas como racismo – discordaram Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski.

Para Lewandowski, causa “repugnância” o preconceito, mas só o Congresso poderia criminalizar a homofobia. Relator de uma das ações sobre homofobia, o ministro Celso de Mello destacou um precedente de caso julgado pelo próprio STF, em 2003. Na ocasião, foi mantida a condenação do editor Siegfried Ellwanger por racismo causado pela publicação de livros que discriminavam judeus. Na época e agora, a Corte entendeu o racismo como conceito amplo, de dimensão social, que não se limita à cor ou raça.

Para Mello, o racismo vai além de aspectos “biológicos ou fenotípicos”, pois “resulta, enquanto manifestação de poder, de construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, dignidade e humanidade dos que, por serem de grupo vulnerável (LGBTI+), são considerados estranhos e diferentes”.

Repercussão. Ao comentar a decisão, o presidente Jair Bolsonaro questionou se “não está na hora de um evangélico no Supremo”, em evento da Assembleia de Deus, em Belém. “O Estado é laico, mas somos cristãos. Respeitamos a maioria e minoria, mas o Brasil é cristão.”

A decisão vale até que o Legislativo aprove lei que permita tipificar o crime. Nos últimos meses, membros da bancada evangélica do Congresso defenderam a interrupção do julgamento (leia mais nesta página).

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), criticou. “A Câmara aprovou a criminalização da homofobia no fim de 2006 e o Senado arquivou. Mesmo que o Congresso não tivesse legislado, na minha opinião, não caberia ao Supremo criar tipo penal via interpretação”.

Já o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse respeitar a decisão, mas não aceita “a interpretação de que é omisso, uma vez que se guia pela devido respeito à democracia e à pluralidade de opiniões, representadas nos diferentes parlamentares eleitos pelo povo”./COLABOROU PEDRO VENCESLAU