Valor econômico, v.20, n.4857, 14/10/2019. Brasil, p. A6

 

Governo tentou realizar 'contrassínodo' em Roma 

Lucas Ferraz

14/10/2019

 

 

Contrariado com o Sínodo da Amazônia realizado neste mês pela Igreja Católica, o governo de Jair Bolsonaro cogitou organizar um evento em Roma, inteiramente bancado por Brasília, para se contrapor à assembleia, vista pelo Brasil como uma ingerência externa na soberania nacional.

A ideia foi apresentada ainda no primeiro semestre deste ano por um dos assessores de Bolsonaro, o general Maynard Marques de Santa Rosa, secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência.

O objetivo era organizar um encontro simultâneo ao do Vaticano, com brasileiros e especialistas internacionais, para tentar desmontar a crítica - unânime no exterior - de que a política implementada no Brasil desde janeiro representa ameaça ao ambiente e a povos indígenas.

Quem relatou ao Valor a ideia do contrassínodo foi um diplomata que participou das discussões para tentar dissuadir Brasília de realizar o evento - como ocorreu.

Bolsonaro e boa parte dos ministros, sobretudo os provenientes do Exército, consideram o sínodo - convocado pelo papa Francisco há quase dois anos - uma afronta à soberania nacional por discutir formas de preservar a Amazônia e proteger as comunidades indígenas. Parte do governo brasileiro considera o papa como um “esquerdista”.

Na sexta-feira, ao chegar ao Vaticano para a cerimônia de canonização da freira brasileira Irmã Dulce, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o papa não pode ser tratado como inimigo. “O governo brasileiro em nenhum momento pode olhar o papa como inimigo. Ele é o líder maior da Igreja Católica e ela fez parte expressiva da formação da sociedade brasileira”, disse Mourão, católico fervoroso.

A assembleia do Vaticano se ocupa dos nove países amazônicos - o Brasil é o que possui a maior parte do território da floresta (67%) - e discute novas formas de evangelização, a defesa de uma ecologia integral e, conforme repetido pelos religiosos em Roma, como dar um rosto “indígena e amazônico” à igreja.

Segundo diplomatas envolvidos com o tema, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República era contra a realização de um evento em Roma que rivalizasse abertamente com o Vaticano. Funcionários do Itamaraty se reuniram com ministros para explicar a natureza do sínodo e argumentar que um evento contrário poderia ser visto como guerra declarada, levando a mais desgaste internacional.

Ressaltaram que o Vaticano não costuma mencionar países ou políticos em seus documentos internos, e o Sínodo da Amazônia não será exceção, como a própria Secretaria de Estado da Santa Sé já sinalizou à diplomacia brasileira.

Procurado pelo Valor por e-mail, o general Santa Rosa não respondeu. A Presidência da República também não se manifestou.

Neste mês estão previstos em Roma vários eventos com o mesmo caráter de contrassínodo, organizados por instituições conservadoras católicas críticas ao papa, que enfrenta uma das mais ruidosas oposições internas na história recente.

Um deles, realizado na véspera da abertura do sínodo, no dia 5, foi organizado pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, nome do pensador católico brasileiro de extrema direita (morto em 1995) que fundou a TFP (Tradição, Família e Propriedade), entidade que apoiou o regime militar e que ainda atua contra “toda forma de socialismo e comunismo, seja na manifestação cultural, artística política ou religiosa”.

O discurso da direita católica contrária ao papa coincide com o do governo Bolsonaro, conforme se vê nos debates e nos documentos disponíveis na rede. A TFP considera o Sínodo da Amazônia uma ameaça para a civilização ocidental (por promover um radicalismo tribal que ameaçaria o cristianismo) e lançou o slogan “o verde é o novo vermelho”.

“Não há relação direta entre nós e o governo brasileiro, mas há convergência de ideais clara”, disse Roberto de Mattei, historiador do cristianismo, presidente da Fundação Lepanto e um dos protagonistas da direita católica conversadora. “O papa é o chefe da Igreja, uma autoridade moral e religiosa, mas ao mesmo tempo é líder da esquerda mundial.” Próximo à TFP, ele foi um dos oradores do evento, assim como Bertrand de Orleans e Bragança, membro da família imperial brasileira.

Mattei considera o sínodo uma ingerência na soberania brasileira. “Se um evento do gênero se ocupasse do território dos Estados Unidos, como você acha que Trump teria se comportado?” Nesta e na próxima semana, outras reuniões dos opositores católicos serão realizadas em Roma.