Valor econômico, v.20, n.4857, 14/10/2019. Opinião, p. A15

 

A doença industrial brasileira 

David Kupfer

14/10/2019

 

 

Já durante os anos de bonança econômica da década passada era preocupante a trajetória que a indústria brasileira vinha percorrendo. Naqueles anos a economia estava deslanchando, mas o desempenho da indústria, embora longe de sinalizar um quadro negativo, não exibia nada comparável. Vêm desde então os indicadores sugestivos de que a indústria brasileira estava doente. Não era exatamente a doença holandesa, que à época já era alvo de acalorados debates, mas de algo mais amplo, na linha de uma doença de custos. A diferença é que a doença holandesa é um problema causado pelo sucesso de setores exportadores cujos superávits comerciais provocam uma tendência à apreciação da taxa de câmbio que vai minando a competitividade internacional do conjunto da indústria. A doença de custos, por sua vez, é uma consequência do fracasso da indústria em aumentar sua produtividade no ritmo requerido pelo encarecimento dos preços relativos dos serviços que, no Brasil, foi bastante intenso nesses anos.

De fato, a observação do padrão dinâmico que prevaleceu durante o último ciclo de crescimento da economia brasileira, ocorrido entre 2004 e 2010, mostra que houve um nítido descolamento entre as trajetórias percorridas pela economia e pelo setor industrial. A economia se beneficiava dos efeitos positivos trazidos por dois círculos virtuosos, que se realimentavam. Um, era o círculo virtuoso do crescimento da demanda, que iniciou puxado pelas exportações, posteriormente teve seu empuxo transferido para o consumo interno e ensaiava centrar-se na formação de capital. Esse último, que é, como sabido, o motor mais poderoso de dinamização econômica, foi interrompido pela grande crise global de 2008. O segundo, era o círculo virtuoso da distribuição de renda que começou como reflexo dos efeitos de políticas públicas (aumentos reais do salário mínimo, programas de transferência de renda) e que depois passou a se apoiar em transformações muito positivas ocorridas no mercado de trabalho no período, especialmente o rápido processo de formalização do emprego.

Enquanto isso, do lado da indústria prevalecia algo como um círculo vicioso da fragilização da atividade manufatureira, caracterizado por um hiato crescente de produtividade, deficiências de competitividade cada vez mais extensas, expressas em perda de densidade das cadeias produtivas no território brasileiro e lacunas de inovação que determinavam um distanciamento cada vez maior da fronteira tecnológica internacional. O fato é que os potenciais impactos do crescimento econômico sobre a indústria não-commodities foram seriamente restringidos pelo “vazamento” para o exterior dos impulsos de demanda então existentes.

Com o esgotamento do ciclo no período 2011-2014 e, principalmente, em 2015, com a entrada da economia em uma crise recessiva da qual ainda não conseguiu se desvencilhar, somou-se ao mal estrutural, já acumulado no passado, os efeitos nocivos de um quadro conjuntural de insuficiência de demanda agravado por erros de uma política econômica que insistiu e continua insistindo em não reconhecê-los. A já doente indústria brasileira passou para a condição de paciente grave.

Evidentemente, o diagnóstico da doença industrial brasileira não é simples. De todo modo, papel extremamente relevante é exercido pelo forte incentivo para a adoção pelas empresas de estratégias minimizadoras de investimentos que prevalece no ambiente econômico brasileiro. Quando uma economia formada por agentes minimizadores de investimento entra em crescimento, ao invés de investirem em unidades produtivas novas, dotadas de escalas ajustadas e tecnologias atualizadas, as empresas em um primeiro momento se limitam a intensificar a utilização da capacidade existente para não assumir os riscos inerentes à decisão de imobilizar capital fixo. Assim, a economia responde ao impulso inicial do crescimento com perdas de eficiência e, consequentemente, custos crescentes, típicos da superutilização de capacidade produtiva.

A existência de uma defasagem temporal entre a expansão do nível de atividade e a realização de investimentos em nova capacidade produtiva é normal e esperada. O que é incomum no Brasil é a extensão dessa defasagem, reflexo dos elevados graus de instabilidade e incerteza que rondam a economia brasileira e de idiossincrasias do sistema financeiro nacional, dentre outras causas. O ciclo de investimentos demora tanto a iniciar que antes de ele efetivamente maturar, a produção a custos crescentes já se transmitiu aos preços, levando a um repique inflacionário. Dadas as características do modelo de estabilização monetária aqui adotado, a aceleração dos preços é detetada pelo sistema de metas de inflação que automaticamente comanda uma elevação das taxas de juros, abortando o ciclo de crescimento. O resultado é uma profecia auto-cumprida. Os empresários que decidiram esperar para investir mais uma vez constatarão que tudo não passou de um voo de galinha e que, portanto, foi racional postergar a decisão de expandir a capacidade produtiva. Mal ou bem, há décadas a economia brasileira acaba premiando quem opta por comportamentos passivos e não quem exerce a sua capacidade empreendedora.

Embora possa se mostrar positiva em termos da sobrevivência individual das empresas, a estratégia de minimização de investimentos conduz a um resultado agregado claramente indesejável porque leva a um quadro de rigidez estrutural que compromete senão impossibilita os avanços requeridos em termos de produtividade, competitividade e inovação para ao menos manter a posição relativa brasileira no cenário internacional. Por ser mais intensiva em capital e, em geral, envolver períodos mais longos de maturação dos investimentos realizados, a indústria é mais afetada do que as demais atividades produtivas (exceção feita, por suposto, aos serviços de infraestrutura). Para a indústria, portanto, eliminar os incentivos para a minimização de investimentos é a cerne de todas a terapias.