O Estado de São Paulo, n. 45888, 07/06/2019. Espaço aberto, p. A2
Nós, cúmplices do crime organizado
Raul Jungmann
07/06/2019
O País registrou no dia 26/5 mais uma chacina no complexo penitenciário de Manaus, com um saldo mórbido de 55 mortos – quatro a menos que na ocorrida em 2017, na mesma capital. Naquele ano, ainda houve 59 mortes em presídios: 33 em Roraima e 26 no Rio Grande do Norte.
Ampliam essa tragédia humana uma política penal equivocada e a indiferença de uma população acuada pela criminalidade que, historicamente, vê essa política como justa e até positiva.
Pode-se compreender essa revolta da população, vítima diária do crime, porém jamais concordar com ela, pela lógica mais elementar. Trata-se, aqui, da substituição da racionalidade pelo sentimento de impotência, medo e frustração. O que não é compreensível mais é a resistência – ou inércia – em rever um modelo há muito diagnosticado como responsável pelo círculo vicioso que inverte o controle dos presídios, onde a vida do preso é garantida pelas facções criminosas, e não pelo Estado.
Um dos pontos centrais dessa distorção está na omissão na legislação das drogas, de 2006, que exime usuários de punição, mas endurece penas para traficantes – sem, no entanto, diferenciar o traficante do usuário.
Dessa forma, jovens que não respondem por crimes de sangue, ou hediondos, muitas vezes em grau primário de contravenção, são condenados à convivência com presos de alta periculosidade, engajados em facções às quais são obrigados a se filiar para ter a garantia de vida que o Estado não oferece.
A busca pela punição, e não da culpa, responde pelo porcentual de 40% de presos provisórios, não condenados, que se submetem às ordens das mais de 70 facções existentes no País. O expurgo verificado nas chacinas, portanto, alcança em sua maioria (55%) jovens, pardos e negros, de 18 a 29 anos, com baixa escolaridade, pouca renda e a maioria vinda de famílias desestruturadas (dados do Infopen, do Ministério da Justiça e Segurança Pública).
Em 85% das mais de 1,3 mil unidades prisionais administradas pelo poder público, mandam as facções criminosas de base prisional, já que todas as facções foram criadas dentro do sistema e de lá controlam o crime aqui fora, nas ruas das nossas cidades.
Hoje temos a terceira maior população carcerária do mundo, com 726 mil apenados, abaixo apenas dos EUA e da China. Entretanto, esses países estabilizaram ou veem declinar suas populações, enquanto a nossa cresce na ordem de 8,3% ao ano e, em 2025, será de 1,5 milhão, uma Porto Alegre dos dias de hoje.
Estes apenados se espremem em 368 mil vagas, para um déficit de 358 mil, enquanto 564 mil mandados de prisão permanecem em aberto. Apenas 15% dos presos estudam e 18% têm algum trabalho, logo, para a vasta maioria inexiste qualquer incentivo à ressocialização.
Aí residem, em boa parte, os índices de reincidência dos egressos, que variam de 40% a 70%, segundo pesquisas. Ou seja, ao enviar para o regime fechado os que cometeram delitos de menor impacto, a sociedade, a Justiça e as forças de segurança fazem uma aposta suicida na própria violência de que somos todos vítimas, pois na verdade recrutam jovens para PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Bonde dos 40, Família do Norte, Guardiães do Estado, Sindicato do Crime e outras tantas facções mais.
O tamanho do equívoco está expresso nos números: são 465 mil presos por roubo, furto ou drogas (em larga maioria usuários), enquanto os homicídios totalizam 81 mil (11%) e bando ou quadrilha (2%), equivalentes a 14,5 mil apenados. Portanto, os crimes que mais agridem a sociedade e a vida representam 13% e os demais, 64%.
Só para dar uma ideia, o PCC tinha, segundo dados do Gaeco, 3 mil membros atrás das grades em 2014. Em 2016 já eram 13 mil e, hoje, são mais de 30 mil. Esse o resultado da nossa política prisional de superencarceramento, a um custo de R$ 2,2 mil ao mês (mais que um aluno do ensino fundamental ao ano) e cuja abertura de uma nova vaga custa aos cofres públicos R$ 60 mil.
Isso significa dizer que zerar o déficit atual demandaria R$ 21,4 bilhões e 360 novas unidades prisionais, além de mais vagas futuras no ritmo atual, até 2025, sem falar nos custos de manutenção.
Nada disso, contudo, é objeto de um debate nacional. Basta ver que não se falou sobre o tema nas últimas eleições. Todo o debate sobre segurança se concentra na violência nas ruas e vai até os portões dos presídios e penitenciárias, sem responsabilidade social e política com o que se passa além dos portões e nas celas. Ocorre que, como procurei demonstrar, a violência e a insegurança nas ruas e cidades é determinada do interior do sistema prisional, pelas facções que o controlam e os egressos que voltam para as ruas após lhes jurar fidelidade para não morrerem.
Quando exerci o cargo de ministro da Segurança Pública, tentei ir em direção contrária a essa força de inércia. Repassamos R$ 90 milhões ao Supremo Tribunal Federal para este, por meio do Conselho Nacional de Justiça, processar a identificação biométrica de toda a população criminal e seus registros, digitalizar os mais de 2 milhões de processos penais existentes e criar e fortalecer as centrais de penas alternativas.
Instituímos a primeira política nacional para egressos, firmamos convênios com os Ministérios da Educação e do Trabalho para levar educação e qualificação profissional às penitenciárias e firmamos convênio com a ONU Produtos e Serviços visando a acelerar a construção de unidades prisionais.
Passos importantes, mas não suficientes para dar cabo da nossa crise prisional. Enquanto não adotarmos uma política em que regime fechado seja para quem comete crimes contra a vida, hediondos, para traficantes ou líderes do crime organizado, não haverá vagas que deem conta nem dinheiro que chegue, pois esse modelo que aí está é falido e insustentável.
Fique claro que não se está propondo “passar a mão” na cabeça de criminosos ou uma política de laissez-faire penal. Muito pelo contrário. O que se pede é racionalidade diante do monstro que temos cevado por continuarmos todos, ainda que indiretamente, sociedade e Estado, cúmplices do crime organizado, da violência e da insegurança.