O Estado de São Paulo, n. 45888, 07/06/2019. Internacional, p. A12

 

Em Buenos Aires, Marci e Bolsonaro falam em criação de moeda comum

Luciana Dyniewicz

07/06/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Respaldo. Em visita à Argentina, brasileiro quebra mais uma vez o protocolo diplomático ao interferir no processo eleitoral e apoiar a reeleição do presidente argentino; líder destaca que Brasil e Argentina têm de ser parceiros na busca ‘pela liberdade’

Empresários argentinos e representantes dos governos de Mauricio Macri e Jair Bolsonaro discutiram ontem a criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina, que se chamaria “peso real”. Uma fonte argentina confirmou ontem ao ‘Estado’ que a moeda comum seria resultado natural da intensificação do processo de integração de dois países que adotam políticas econômicas semelhantes.

Desde o início do Mercosul, no início dos anos 90, existe a intenção de se criar uma moeda única. No entanto, choques econômicos, como a desvalorização do real, de 1999, impediram a concretização do plano. A discrepância entre as inflações de Brasil e Argentina, porém, seria um grande desafio. Enquanto a inflação acumulada nos últimos 12 meses no Brasil é de 5%, na Argentina chega a 55%.

A questão da moeda comum foi apresentada ontem pelo ministro da Economia Paulo Guedes durante um encontro empresarial no Hotel Alvear, no qual estiveram presentes Bolsonaro e os ministros argentinos Jorge Faurie, de Relações Exteriores, e Dante Sica, de Produção e Trabalho.

A criação de uma moeda única para o Mercosul ganhou impulso no fim de abril, quando a Argentina atravessava mais uma fase aguda de sua crise financeira. A ideia havia sido apresentada ao governo de Mauricio Macri meses antes em Washington. Na ocasião, a equipe argentina pediu para que os brasileiros esperassem até que as eleições presidenciais do país passassem, em outubro.

Com a situação econômica agravada, porém, o ministro da Fazenda da Argentina, Nicolás Dujovne, foi até o Rio de Janeiro em abril e se encontrou com Guedes. Dujovne pediu para anunciar o projeto, o que foi negado por Brasil, apurou o Estado. A divulgação da informação de que Bolsonaro estava disposto a fazer parte de uma união monetária seria uma ferramenta para impulsionar a popularidade de Macri, que tenta a reeleição neste ano e teve sua imagem golpeada pela crise.

Em resposta ao comunicado do Banco Central do Brasil de que não há estudos para uma união monetária com a Argentina, Guedes afirmou: “Claro que o Banco Central não tem projeto sobre o assunto, a ideia é minha”. A jornalistas, Guedes afirmou que a criação da moeda é uma conjectura.

Diplomacia. Ontem, em sua primeira visita oficial à Argentina, Bolsonaro quebrou mais uma vez ontem protocolos diplomáticos e anunciou apoio à reeleição de Macri. Apesar de não citar o nome do argentino nem a chapa adversária, composta por Alberto Fernández e Cristina Kirchner, Bolsonaro afirmou que “pedia a Deus” que iluminasse os argentinos para que “votassem com a razão e não com a emoção”.

Mais de 60 movimentos sociais organizaram ontem um protesto contra Bolsonaro diante da Casa Rosada, sede da presidência argentina. O presidente, porém, já havia deixado o local do encontro.

As eleições presidenciais da Argentina serão em 27 de outubro e, de acordo com as últimas pesquisas, a chapa kirchnerista está à frente em um possível segundo turno, mas quase empatada no primeiro.

“Eu conclamo o povo argentino, que Deus abençoe a todos eles, porque terão pela frente agora eleições. E todos têm de ter, assim como grande parte da população no Brasil teve, muita responsabilidade, razão e menos emoção para decidir o futuro desse país maravilhoso que é a Argentina”, disse o brasileiro ontem, em discurso na Casa Rosada, ao lado de Macri.

Bolsonaro destacou que os países têm de ser parceiros não apenas econômicos, mas na busca “por um objetivo maior: a liberdade”. “Toda a América do Sul está preocupada, pois não quer novas Venezuelas na região”, afirmou, em referência à deterioração econômica que ocorreria, segundo ele, caso o kirchnerismo voltasse ao poder na Argentina.

No entanto, o ministro brasileiro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, disse que o governo brasileiro não quer interferir de “nenhuma maneira” no processo eleitoral argentino. “Apoiar Macri é o reconhecimento do muito que pode ser feito hoje entre os dois governos”, disse. “Não é pensando na hipótese de vitória de Cristina que vamos desaproveitar este momento.”

Para o cientista político Marcelo Leiras, da Universidad de San Andrés, apesar de Bolsonaro não ter citado nomes, houve uma interferência do brasileiro na política interna argentina, o que é “muito mal visto em relações exteriores”.

O brasileiro já havia demonstrado seu apoio a Macri em ocasiões anteriores. Em Dallas, quando recebeu o prêmio de personalidade do ano da Câmara de Comércio Brasil-EUA, em maio, Bolsonaro disse que Cristina Kirchner, “amiga do PT”, pretendia roubar a liberdade “de nós”.

Além de ser alvo de comparações, a Venezuela também foi assunto das reuniões bilaterais de ontem. A jornalistas, Bolsonaro afirmou que espera que haja um racha no Exército venezuelano, que hoje apoia Nicolás Maduro, para que o governo se desestabilize. “É difícil acabar com uma ditadura. Esperamos que haja um racha. Caso contrário, fica difícil normalizar a situação.”

Na área econômica, os dois presidentes destacaram que o acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia nunca esteve tão próximo de ser fechado. As negociações já se estendem há mais de 20 anos e, em até quatro semanas, o documento poderia ser assinado, segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Livre-comércio. Questões sobre a taxação de vinhos e laticínios estão entre as poucas que ainda estão abertas. Há a expectativa de que as negociações sejam encerradas em uma rodada em Bruxelas, nos dias 27 e 28 de junho. “Só não sei se seria anunciado ali ou no encontro do G20 (no Japão, em 28 e 29 de junho)”, disse o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

De acordo com o presidente, nas reuniões, foi discutida ainda a possibilidade de se construir duas hidrelétricas entre a Argentina e o Rio Grande do Sul.

Sobre a reforma da Previdência, Bolsonaro admitiu que a tramitação está desgastada e a posição dos parlamentares em relação à inclusão dos Estados e municípios no texto não é “justa”.

“Tem desgaste sobre a previdência. Mas todo mundo tem de estar no mesmo barco. Acho que eles (os parlamentares) vão ceder e vai ser como gostaríamos que fosse. Uma reforma que pegue todo mundo e com o voto de todos os partidos”, afirmou.

CRONOLOGIA

Presidente distribuiu apoio

- 19 de março

EUA

Bolsonaro diz que apoia ideia de Trump de construir muro na fronteira, uma promessa de campanha do americano que disputará reeleição

- 23 de março

Chile

Enfrentando críticas por propor um novo órgão regional, o Prosul, Sebastián Piñera recebe o apoio de Bolsonaro, em sua primeira visita a um país da América do Sul

- 31 de março

Israel

Em visita ao premiê Binyamin Netanyahu em plena campanha, Bolsonaro o chamou de ‘irmão’ e tornou-se peça na sua campanha

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Entrevista - Vinícius Vieira: 'Apoio eleitoral deixa Brasil mais vulnerável

Renata Trancheira

07/06/2019

 

 

Apoio eleitoral deixa Brasil mais vulnerável’

Vinicius Vieira, professor de relações internacionais da FGV

Ao manifestar preferência por um líder específico, Jair Bolsonaro rompe de novo com uma tradição da política externa brasileira, segundo o professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas Vinícius Vieira. A seguir, trechos da entrevista ao Estado.

Bolsonaro manifestou preferência pelos quatro presidentes que visitou. Isso tem precedente?

Não me recordo de nada com esse padrão. Claro que há discussões acadêmicas sobre se determinada atitude do presidente pode beneficiar indiretamente outro chefe de governo. Por exemplo, oferecer mais facilidades para importação, estímulo ao comércio exterior. É esperado. Mas não um apoio ostensivo como Bolsonaro faz.

Quais as possíveis consequências?

Ao fazer isso, Bolsonaro coloca o Brasil em uma situação de vulnerabilidade. No caso da Argentina, tem a possibilidade de Macri não se reeleger. Como ficaria a relação entre Brasil e Argentina num cenário em que outro candidato vença? Da mesma maneira não sabemos como ficarão as relações com os EUA sob um eventual governo democrata, já que ele tem proximidade com Donald Trump. A afinidade entre líderes é positiva, desde que não provoque constrangimento às relações bilaterais.

Como seria uma troca de governo nos EUA?

Há uma ala mais à esquerda do Partido Democrata que tem grandes chances de fazer um candidato para enfrentar Trump. Se alguém como Bernie Sanders virar presidente, pode dificultar, por exemplo, a ascensão brasileira à OCDE.

Essa prática é uma ingerência?

Não, pois esse tipo de ação é mais comum do que imaginamos. Mas acontece de maneira sutil. Nossa política externa sempre seguiu o princípio de não intervenção. Bolsonaro segue sua própria linha.

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Visita inesperada e em péssima hora

Carlos De Angelis

07/06/2019

 

 

Vestidos de modo igual – paletó azul, camisa azul-celeste e gravata em tons de azul –, Jair Bolsonaro e Mauricio Macri fizeram sua apresentação formal na cúpula de ontem. Os temas comentados pelos dois foram os esperados: integração energética, melhoria logística, agilização de intercâmbios, aceleração do demorado acordo de livre-comércio e, claro, a Venezuela.

Mas Bolsonaro deu um passo a mais ao almejar que não surjam na América “novas Venezuelas” e entrou, sem dissimular, na campanha eleitoral argentina. Pediu aos argentinos que votem “com mais responsabilidade, mais razão e menos emoção”, dando a entender que os eleitores kirchneristas se deixam levar por fatores emocionais.

A visita era esperada como a primeira de seu governo, como era tradição de líderes anteriores. O encontro também era esperado na reunião do G-20, mas não aconteceu. Finalmente, sua presença na Argentina se concretiza numa hora complicada para Macri por duas razões. Primeiro, a Argentina atravessa um momento econômico complexo, de inflação alta e forte recessão. Segundo, os questionamentos sobre a candidatura de Macri à reeleição, quando muitos acham que a governadora de Buenos Aires, María Eugenia Vidal, seria uma melhor opção, segundo pesquisas. Ao mesmo tempo, Macri contava com o crescimento da economia brasileira para melhorar seus resultados econômicos, o que não está ocorrendo.

Na semana anterior, Bolsonaro deu uma entrevista ao diário argentino La Nación cujo título foi: “Eu me esforço para que os argentinos elejam um candidato de centrodireita”. A mensagem fez engasgar os estrategistas de Macri, que preferem buscar sua força política no indefinido espectro da pós-ideologia. Isso implica em se distanciar de muitas das iniciativas impulsionadas por Bolsonaro, pelo menos publicamente, exceto com relação à “mão dura em matéria de segurança”.

As declarações tendendo para a direita só conseguem sensibilizar uma faixa pequena dos eleitores de Macri. O restante prefere que ele se aproxime de um espaço mais centrista e próximo de um progressismo liberal, com temas como o aborto. Talvez por isso, para suavizar a dura imagem dos dois, foi aberto ontem um congresso internacional sobre a deficiência, com a vice-presidente argentina, Gabriela Michetti, que é cadeirante, e a primeira-dama brasileira, Michelle Bolsonaro, que se expressou usando a linguagem de sinais.