O Estado de São Paulo, n. 45885, 04/06/2019. Política, p. A4

 

Bolsonaro edita recorde de decretos desde Collor

Renato Onofre

Mariana Haubert

04/06/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Poderes. Com base incerta no Congresso, presidente já usou sua caneta para assinar 157 determinações; medidas têm sofrido contestações na Câmara e são alvo de ações no Supremo

Desde que subiu a rampa do Palácio do Planalto, em 1.º de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro usou sua caneta, como costuma frisar, para assinar 157 decretos. É o segundo presidente que mais “canetou” desde a promulgação da Constituição de 1988. Só perde para o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que editou 486 decretos nos primeiros 150 dias de governo.

Com uma base incerta no Congresso, Bolsonaro tem adotado o expediente em alguns casos para acelerar a implantação do seu projeto político e cumprir promessas de campanha. O Parlamento que tomou posse em março reúne o menor número de congressistas declaradamente governistas da redemocratização para cá. “Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto. Logicamente, decretos com fundamento”, afirmou Bolsonaro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na semana passada.

Algumas medidas, no entanto, têm sofrido contestações. Só na Câmara, há 117 pedidos para sustar 20 dos decretos, enquanto sete ações no Supremo Tribunal Federal (STF) questionam a legalidade de duas das “canetadas” do presidente. Todas colocam em xeque os fundamentos utilizados pelo governo para alterar normas sem consultar o Congresso.

É o caso do decreto que ampliou o porte de armas no País. A primeira versão, publicada em 7 de maio, foi tema de 22 projetos de decreto legislativo, um dispositivo legal dos parlamentares para anular esse tipo de ato presidencial. Também foi alvo de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no STF. O governo chegou a fazer mudanças no texto, mas não foram suficientes para afastar as dúvidas, levando a três novos pedidos de anulação na Câmara.

O decreto das armas, contudo, não é o mais questionado. Mudanças no sistema de nomeações para cargos no governo levaram a 28 pedidos para sustar a medida que criou o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas, plataforma eletrônica conhecida como “banco de talentos”. Deputados, todos de oposição, viram na medida uma forma de o governo se sobrepor à autonomia universitária.

Até agora, apenas um decreto presidencial foi derrubado no Congresso: o que previa aumentar o rol de servidores aptos a impor sigilo a documentos oficiais. Este, porém, não saiu da caneta de Bolsonaro, mas da do vice-presidente, Hamilton Mourão, que assinou a medida quando assumiu interinamente a Presidência em fevereiro.

Entidades. O número de “canetadas” de Bolsonaro levou 47 entidades a assinar um manifesto contra o “modus operandi” do governo. Batizado de “Pacto pela democracia”, o texto diz que “governar por decreto” é um “atentado à democracia” e traz “uma lembrança amarga à sociedade brasileira”, em referência aos decretos-leis do período da ditadura. Entre as entidades que assinam o manifesto estão o Sou da Paz e o Instituto Ethos.

A edição de decretos pelo presidente está prevista na Constituição. Não há limite para o uso do dispositivo pelo chefe do Executivo. No entanto, a Constituição não permite a um presidente criar “nada de novo” por meio de decreto, mas apenas regulamentar a execução de uma lei.

Para o constitucionalista Flavio Pansieri, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, é “natural” um governo que não é de continuação propor mais decretos, já que, em tese, se opõe a políticas públicas anteriores. “O que me parece é que os questionamentos muito mais têm a ver com a concordância ou discordância do mérito do tema do que com a utilização adequada do decreto”, afirmou.

Procurado, o Palácio do Planalto disse que os decretos foram assinados “a partir do juízo de conveniência e oportunidade” de Bolsonaro.

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Uso exagerado pode refletir dificuldades em articulação

Rodrigo Augusto Prando

04/06/2019

 

 

Jair Bolsonaro editou, nestes cinco meses de mandato, 157 decretos. É um número alto, se comparado aos demais presidentes, só sendo superado por Collor. Vejamos: Fernando Collor (486), Itamar Franco (97), FHC 1 e 2 (147 e 151), Lula 1 e 2 (154 e 112), Dilma Rousseff 1 e 2 (66 e 73), Michel Temer (94) e Bolsonaro (157).

Bolsonaro fez questão, não faz muito, de afirmar que tinha o poder da caneta, comparando-se a Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, por ter a condição legal de usar do expediente de editar decretos. Vale, aqui, ressaltar que decretos são atos exclusivos dos chefes do Executivo (prefeito, governador e presidente), mas não têm maior importância na hierarquia jurídica do que a lei.

No limite, o decreto, sendo ato do Executivo, não passa pelo crivo do Congresso Nacional. Assim, o uso exagerado de decretos pode significar – e parece ser o caso de Bolsonaro – dificuldades no diálogo e na negociação política com deputados e senadores.

E essa dificuldade se assenta numa realidade em que: 1) o governo não constituiu uma sólida nem uma porosa base parlamentar; 2) o PSL, partido o presidente, é uma conjugação de personalidades neófitas sem compreensão da dinâmica política; 3) as constantes rusgas com Rodrigo Maia e, não menos importante; 4) a insistência em conjugar o discurso de “nova” e “velha” política com o rodízio de se governar elegendo inimigos, mantendo as instituições em constante tensão.

Os eleitos – presidente da República, deputados federais e senadores – são legitimados pelo voto. Diálogo e harmonia entre os Poderes é essencial.