O globo, n. 31404, 31/07/2019. Mundo, p. 24

 

Custo Itaipu

Janaína Figueiredo

31/07/2019

 

 

Acerto secreto com Brasil ameaça levar presidente do Paraguai a impeachment

A revelação de parte de um ex-diretor da Ande (a Eletrobras paraguaia) dos termos da ata diplomática assinada por autoridades dos dois países em maio, em Brasília, modificando aspectos da administração compartilhada da hidrelétrica de Itaipu desencadeou verdadeira tsunami política em Assunção. O presidente Mario Abdo Benítez ficou à beira de um pedido de impeachment e foi obrigado a afastar quatro altos funcionários, entre eles o chanceler Luis Castiglioni, senador colorado mais votado nas eleições de 2018. Segundo analistas locais ouvidos pelo GLOBO, acrise tornou o atual governo o mais fraco desde 2003.

Instalou-se a sensação de que o documento negociado em Brasília, já rechaçado pelo Senado do país, foi um acordo secreto altamente prejudicial para os interesses do Paraguai. Ontem, o advogado Tadeo Ávalos apresentou uma denúncia à procuradora-geral do Estado, Sandra Quiñónez, acusando Castiglioni; o exembaixador do Paraguai no Brasil, Hugo Saguier Caballero; o ex-diretor da Ande Alcides Jiménez, e o ex-diretor paraguaio de Itaipu José Alderete, de traição à Pátria.

Os pontos mais questionados pelos paraguaios se referem a limitações que seriam impostas ao país sobre seu direito de solicitar energia produzida por Itaipu e a redução da chamada “energia excedente” que seria entregue ao Paraguai. Desde 2007, o país tem preferência para receber esse tipo de energia, a preços baixíssimos.

Foco no excedente

As denúncias públicas feitas por Pedro Ferreira, ex-presidente da Ande que ontem foi ao Parlamento reforçar suas acusações ao governo de Benítez, acentuaram a crise e aumentaram as dúvidas sobre como o chefe de Estado conseguirá acalmar os ânimos. Benítez, do Partido Colorado, foi eleito por margem estreita de votos e não controla o Parlamento, onde enfrenta a oposição de liberais, partidos de esquerda e, atualmente, também de amplas alas do próprio partido. Segundo informações que circularam na imprensa local, correligionários do presidente teriam apoiado o pedido de impeachment, suspenso temporariamente após a decisão de Benítez de afastar os quatro altos funcionários que assinaram a ata de Brasília.

—Esta crise é consequência de erros graves cometidos pelo governo e da incapacidade dos técnicos de chegarem a um acordo que acabou ficando, pela primeira vez desde a criação de Itaipu, em mãos da Chancelaria — afirmou ao GLOBO Alejandro Evreinoff, do Instituto de Altos Estudos Estratégicos (IAEE) e assessor de Coordenação de Itaipu.

Segundo ele, “o ponto mais sensível refere-se à energia excedente, que permite ao Paraguai baixar os custos operacionais de suas empresas e se desenvolver”.

— Finalmente, estamos igual ou pior que em outubro do ano passado, quando os técnicos começaram a negociar os termos para 2019. Essa ata não tem validade e acabou sendo usada para tentar desestabilizar o governo — apontou o especialista.

Itaipu é uma questão extremamente sensível para o Paraguai, já que fornece 90% da energia elétrica consumida pelo país. Com menos de um ano de gestão, sem poder exibir grandes êxitos e às voltas com o impacto da recessão argentina e a desaceleração da economia brasileira, Benítez cometeu um erro que já lhe custou caro.

No discurso anual ao Congresso, no começo de julho, o presidente ignorou a ata de Brasília e agora é acusado de secretismo e traição. O governo brasileiro considera válido o documento e espera seu cumprimento.

—No Paraguai, apolítica pode ser vertiginosa, e erros como este podem ter consequências graves — afirmou o ex-chanceler Ruben Melgarejo Lanzoni, espécie de assessor externo do presidente.

Num país que elege seus presidentes em apenas um tur no,Bení tez venceu as eleições por pouco e é pressionado por um Congresso que mostrou rápida capacidade de articulação. O chefe de Estado reagiu rápido, mas analistas como José Tomás Sánchez se perguntam como esta crise afetou o governista e dividido Partido Colorado.

—Existe a sensação de que este governo nunca começou e, agora, a incógnita sobre a guerra colorada—frisou Sánchez.

Sensação de espoliação

Desde que a crise veio à tona, uma pesquisa sobre a hidrelétrica e a relação entre Brasil e Paraguai desde 1973 realizada pelo Centro para a Democracia, a Criatividade e a Inclusão Social viralizou nas redes sociais. O trabalho, coordenado por Miguel Carter, tem números que só aumentaram a irritação social. A pesquisa de Carter diz que entre 1985 e 2018 o Paraguai deixou de ganhar US$ 75,4 bilhões por vender a energia que não consome ao Brasil, a preços abaixo dos valores de mercado. O trabalho mostra, ainda, que em todos esses anos de funcionamento da hidrelétrica o Paraguai usou 7,6% da energia produzida.

— Há um amplo consenso no país de que o tratado e esta última negociação foram amplamente desfavoráveis aos paraguaios —afirmou Carter.

Em Assunção, o documento selado em Brasília é chamado de “ata secreta da traição”, e mesmo que nada do que foi negociado tenha saído do papel, sua divulgação debilitou um governo que já era vulnerável e que muitos se perguntam como se sustentará por mais três anos. (Colaboraram Manoel Ventura e Eliane Oliveira, de Brasília)

Consumo paraguaio está no centro da disputa

Qual a origem do problema?

Itaipu é uma hidrelétrica binacional criada por um tratado assinado em 1973 e que começou a produzir energia elétrica em 1984, com administração dividida entre Brasil e Paraguai. Cada país tem direito a 50% da energia, mas o tratado determinou que o Paraguai, com um mercado interno muito menor, tem que vender ao Brasil o que não consome da sua metade — a chamada “energia adicional”. O Brasil retém boa parte do pagamento pela energia adicional para abater o empréstimo feito ao Paraguai para integralizar a sociedade na construção de Itaipu e investimentos posteriores. Em 2009, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo, hoje senador, fecharam um acordo que triplicou de US$ 2,81 para US$ 8,43 por megawatt-hora o valor que o Paraguai recebe efetivamente pela energia adicional. Além disso, existe a chamada “energia excedente”, a produzida acima da potência oficial de Itaipu em razão de chuvas fortes e reservatórios cheios. Esta energia é mais barata por não incluir juros sobre a dívida da usina nem impostos. Em 2007, o Brasil deu ao Paraguai o direito de usar uma proporção maior da energia excedente. Isso ajuda o Paraguai, país que não tem saída para o mar, a baratear os custos de suas empresas. Já a chamada “energia garantida” é a que não se enquadra nas duas categorias acima e tem preço igual para os dois países. Com esses arranjos, o Brasil acaba pagando mais em média pela energia de Itaipu e a conta de luz no país vizinho é menor.

Qual é a queixa do governo brasileiro?

O Brasil reclama da declaração feita pelo Paraguai da energia que consumirá anualmente, afirmando que o vizinho tem declarado menos que o consumo real, já que conta com a energia excedente. É com base nessa declaração, no entanto, que o Brasil paga ao Paraguai pela energia adicional, um custo que acaba absorvido pelos consumidores brasileiros. O acerto tenta resolver o descasamento da energia declarada e a de fato consumida pelo Paraguai, e a assimetria entre os preços pagos por cada lado. Pelo acerto, que resultou em uma ata assinada pelas duas Chancelarias, o consumo declarado pelos paraguaios aumentaria gradualmente até 2022. O Paraguai afirma que a ata não tem valor jurídico, e o Senado paraguaio votou por sua rejeição. A oposição acusou o presidente Mario Abdo Benítez de traição à Pátria, chegando a falar em impeachment.

Qual a consequência do acerto para os paraguaios?

Mais de 90% da energia consumida no Paraguai é gerada pela hidrelétrica de Itaipu, e por isso qualquer alteração nas regras tem impacto substancial na tarifa paraguaia, o que provocou protestos no país. No Brasil, cerca de 15% da energia consumida é gerada por Itaipu, e o impacto nos preços é diluído.

Por que o assunto ganha urgência?

Areação do Paraguaia o acerto de maio antecipa a renegociação do Tratado de Itaipu, prevista para 2023, quando a dívida da construção da usina estará paga. Os trechos que tratam da comercialização de energia poderão ser alterados, o que gera expectativas no Paraguai. O país vizinho há tempos afirma que o Brasil paga pouco pela energia que os paraguaios não consomem e reivindica o direito de vendê-la para terceiros países ou no mercado livre (diretamente ao consumidor), o que hoje lhe é vetado.