Correio braziliense, n. 20471, 08/06/2019. Política, p. 2

 

Difícil união

Cláudia Dianni

08/06/2019

 

 

A criação de uma moeda única entre Brasil e Argentina, à qual seria dado o nome de “peso real”, ideia ventilada pelo presidente Jair Bolsonaro em visita ao país vizinho nesta semana, caiu mal entre economistas e parlamentares, que consideram o projeto “fora da realidade”. De acordo com especialistas, é possível perseguir uma união monetária, a exemplo da União Europeia, no entanto, considerando a conjuntura econômica e o nível de desenvolvimento e de integração entre os vizinhos sul-americanos, seria necessária uma construção institucional que adiaria o projeto por tempo a perder de vista.
“Uma nova moeda é como um casamento. Você ganha de um lado e perde de outro. Às vezes, você quer ver seu Botafogo jogar e não consegue, porque sua esposa quer ir ao shopping. Às vezes, acontece o contrário também, tá certo?”, disse Bolsonaro, para quem a moeda pode ser uma “trava” ao que chamou de “aventuras socialistas” na América do Sul.
“Você quer levar sua esposa para ver o Mengão jogar e não consegue. Mas, como em todo o casamento, a gente mais ganha do que perde. Na moeda também. Vejo que temos muito mais a ganhar do que a perder”, comparou o presidente, ao explicar a proposta, ontem, já no Rio de Janeiro. Com a repercussão que ganhou nas redes sociais, onde proliferaram memes sobre a suposta moeda, o presidente disse que ouviu do ministro da Economia, Paulo Guedes, que a intenção seria incluir outros países do continente na moeda única, mas que seria um projeto para o futuro.
Ainda em Buenos Aires, quando questionado pela imprensa, Bolsonaro havia dito que a ideia a moeda é de Guedes. “Já falei para vocês que meu forte não é economia. Nós acreditamos no feeling, na bagagem, no conhecimento e no patriotismo do Paulo Guedes”, afirmou. Antes de deixar a Argentina, ele ressaltou que Guedes teria dado o primeiro passo para o “sonho” da unificação monetária entre os dois países.
Ontem, ainda pela manhã, o Banco Central tratou de esclarecer, por meio de nota, que não há projeto ou estudo em andamento para uma união monetária com a Argentina. “Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidades e fortalecimento institucional”, disse a nota.
Perdas e ganhos
As perdas do eventual “casamento” seriam a autonomia para definir as políticas monetária, cambial e fiscal. Mesmo assim, antes, seria preciso percorrer um longo caminho, já que não é possível partir diretamente para uma moeda única, sem passar por várias etapas de integração econômica, como fez a Europa do pós-guerra, com a criação do Mercado Comum do Carvão e do Aço, em 1951, até 2002, quando o euro começou a circular, lembrou José Luis Oreiro, professor de economia da Universidade de Brasília.
Foram mais de 50 anos em que a Europa passou por uma união alfandegária (fim das tarifas comerciais entre os países do bloco), avançou para uma união aduaneira (adoção de uma tarifa comum para terceiros países), depois para um mercado comum (transição de pessoas, com mercado de trabalho comum), para, finalmente, chegar a uma união monetária, nível que requer convergência entre taxa de juros, de câmbio, inflação e meta fiscal. “Como pode haver convergência com a Argentina acumulando inflação de 55% em 12 meses, e o Brasil, 4%?”, questionou Oreiro. “Imagino que os ministros das finanças da Europa estão se divertindo com a ideia.”
Já o ganho poderia ser uma moeda mais forte, que aumentaria a potência dos países sul-americanos em negociações comerciais. Mas, na atual conjuntura econômica dos envolvidos, o preço seria alto. “Brasil e Argentina estão com indicadores econômicos bem diferentes e, na Europa, os países, quando fizeram a integração monetária, tinham níveis de desenvolvimento muito diferentes dos nossos países”, disse o coordenador do curso de economia do Ibmec, Márcio Antonio Salvato. Para ele, o real, a moeda brasileira mais longeva, instituída em 1994, foi trabalhoso e bem-sucedido, combatendo uma alta inflação. Ele também recordou as dificuldades que teve a Grécia, em 2010, para cumprir a meta fiscal europeia, colocando o bloco em risco. “Perde-se muita autonomia. É por isso que o Reino Unido não aderiu ao euro e mesmo assim está tendo muita dificuldade para sair do bloco.”
Fora da realidade
Nelson Marconi, professor da Fundação Getulio Vargas, considerou a proposta “bem fora da realidade”. Ele explicou que, ao perder autonomia para gerir sua taxa de câmbio, o país abre mão da liberdade de influenciar sua competitividade. “Os países usam suas taxas de câmbio para ganhar competitividade nos mercados internacionais. Sem isso, só se pode melhorar a competitividade dos produtos pela redução dos custos de produção”, comparou. “A Espanha, por exemplo, quando aderiu ao euro, teve de promover um verdadeiro arrocho salarial para ser competitivo dentro do bloco”, lembrou.  De acordo com o economista, hoje, por ter a maior inflação, a Argentina perderia muito. “Ou o Brasil teria que desvalorizar tanto sua moeda que geraria inflação aqui.”
Economista-chefe do Banco Votorantim, Roberto Padovani classificou a ideia como “engraçada”. Ele acredita que o objetivo do presidente Bolsonaro tenha sido dar um sinal mais político do que criar uma expectativa econômica. “É menos uma proposta econômica e mais uma sinalização geopolítica, já que, durante a eleição, ele sinalizava que não apoiava o Mercosul”, frisou.

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Deputados criticam

08/06/2019

 

 

 

 

A discussão sobre a moeda única repercutiu entre deputados, que comentaram a proposta em suas redes sociais. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), usou um tom crítico em sua conta no Twitter. “Será? Vai desvalorizar o real? O dólar valendo R$ 6,00? Inflação voltando? Espero que não.” No Rio, Bolsonaro falou sobre o comentário. “Essa proposta existe desde 2011, e Paulo Guedes mostrou-se interessado, com o governo da Argentina, a voltar a estudar essa questão. Rodrigo Maia e qualquer que tenha criticado, é um direito, um dever. Estamos num país livre. As críticas são muito bem-vindas e nos alertam sobre a possibilidade de estarmos nos desviando do caminho certo”, afirmou.
“Peso real é ver a economia encolhendo, a escalada do desemprego, milhões de brasileiros desalentados, e Bolsonaro falando bobagem sobre moeda Brasil e Argentina. Os problemas da economia não são de agora, mas o presidente não tem ideia do que fazer para começar a resolvê-los”, publicou em suas redes sociais o deputado Marcelo Freixo (PSol-RJ). “A moeda seria uma maneira de pagar as contas da Argentina, enfraquecendo nossa moeda”, disse, pelo Twitter, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP)

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Ideia é dos argentinos, diz Guedes

08/06/2019

 

 

 

Em Buenos Aires, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a ideia interessaria mais aos argentinos. “Quem está querendo são eles. Os argentinos estão animadíssimos”, afirmou aos jornalistas. Nós estamos pensando, conversando e conjecturando. Eles abraçaram, aparentemente, a ideia”, emendou. Ele ressaltou que a moeda única seria um processo de longo prazo. “Eu falei que daqui a uns 20 ano haveria cinco moedas no mundo, e eu acho que a integração na América Latina, levaria, eventualmente, a uma moeda única, e vice-versa, uma moeda única também aceleraria uma integração regional.”

Em abril de 2008, o ministro publicou um artigo na revista Época, com o título “Por uma moeda única na América Latina”. O subtítulo do artigo dava nome à moeda:  “peso-real, uma moeda única na América Latina, romperia a inércia que trava o crescimento”.
Analistas argentinos disseram a jornalistas, em Buenos Aires, que a proposta está em discussão há cerca de dois meses, pois o presidente do país, Mauricio Macri, que tenta a reeleição em outubro, enfrenta um momento difícil, com a grave crise argentina.