Valor econômico, v.20, n.4854, 09/10/2019. Brasil, p. A4

 

Cientistas propõem a papa ação pela Amazônia 

Daniela Chiaretti 

09/10/2019

 

 

O papa Francisco e os 180 bispos reunidos ontem no Sínodo da Amazônia foram informados que o desenvolvimento sustentável da floresta pode ser pela via da bioeconomia, que o aumento de incêndios em 2019 confirma a tendência de alta do desmatamento e que a comunidade científica vai trabalhar em conjunto para desenvolver uma plataforma de alerta antecipado dos riscos para toda a região.

Em parte isso ocorreu durante os quatro minutos da fala do climatologista brasileiro Carlos Nobre. “A floresta amazônica é um ‘coração biológico’ para a Terra, mas encontra-se crescentemente ameaçada”, disse aos bispos.

Nobre fez referência a um documento científico lançado oficialmente ontem. Embora não tenha sido preparado especificamente para o sínodo, pode auxiliar nas discussões dos bispos.

Trata-se do “Marcos Científicos para Salvar a Amazônia”, texto de 14 páginas assinado por 60 cientistas dos países amazônicos e pesquisadores globais.

O documento tem muitos dados sobre a região, nove princípios, 11 marcos e concretiza a proposta de um painel científico para a Amazônia, inspirado no IPCC da ONU - mas sem ser intergovernamental e podendo apresentar soluções.

“O grande aumento de incêndios em 2019 confirma a dramática tendência ascendente do desmatamento”, diz o texto. O documento calcula em 87 mil incêndios em todo o Brasil durante os primeiros oito meses de 2019, “aumento de mais de 90% em relação a 2018”, sendo que “mais de 45 mil” deles teriam ocorrido na Amazônia brasileira.

Um plano para salvar a Amazônia, recomendam os pesquisadores do “Painel de Ciência para a Amazônia”, deve ser moldado e executado pelos países amazônicos, mas apoiado por nações de todos os lugares. “Quando se trata de apoio financeiro, os mais ricos têm uma profunda responsabilidade, tanto como compradores de produtos de áreas desmatadas quanto pelas emissões acumuladas de gases-estufa.”

Os cientistas defendem a soberania dos países amazônicos. “A floresta amazônica fica no território soberano de oito nações e um território nacional. Nenhuma nação fora da Amazônia pode ameaçar a integridade territorial ou a soberania das nações amazônicas e da floresta.”

Lembram que ali há “algumas das cidades mais violentas do mundo” e muita pobreza.

A proposta é que a gestão se baseie na ciência e nos conhecimentos e práticas tradicionais dos povos indígenas “que administram essas florestas há milênios”.

Os cientistas dizem que o estado da floresta deve ser monitorado de perto, “tendo em vista as terríveis ameaças que a região enfrenta”.

“Nenhuma entidade comercial, em qualquer lugar, tem o direito de comercializar produtos ou se envolver em atividades comerciais que ameaçam a sobrevivência da floresta amazônica e das pessoas que dependem de sua conservação”, dizem.

Apontam a responsabilidade de empresas que comercializam e usam produtos oriundos da Amazônia - inclusive fundos e carteiras de investimento. Os consumidores “devem dispor de todas as informações sobre quaisquer empresas e linhas de produtos que ameacem a viabilidade da floresta”. Os cientistas propõem que os planos de restauração florestal em larga escala sejam prioridade e que seja dado maior foco à melhoria da produtividade em áreas já desmatadas.

Apoiam a reativação e expansão do Fundo Amazônia, com aumento do financiamento internacional em pelo menos US$ 1 bilhão ao ano e que sirva também para cofinanciar pesquisa e inovação científica, conservação florestal e restauração de terras degradadas.

Citam a necessidade de proteção dos povos indígenas e comunidades contra a “apropriação ilegal, não autorizada ou não documentada de suas terras, bem como contra a extração de madeira, mineração, agricultura e pecuária”.

Nobre disse que “há uma oportunidade emergente de desenvolver um novo paradigma sustentável que garanta que a floresta valha muito mais em pé que derrubada.”

O brasileiro reforçou que “este novo paradigma de desenvolvimento sustentável” deve ser socialmente inclusivo e justo, fortalecer comunidades, indígenas e mulheres e combinar os conhecimentos científicos com tradicionais.

O brasileiro foi ouvido como “a voz da ciência” da região amazônica, diz uma fonte do Vaticano. “É uma voz do território. O papa quer escutar estas vozes na primeira semana do sínodo e fugir do procedimento costumeiro do passado, da Igreja impondo suas ideias de baixo para cima”, segue. “Quer tornar a Igreja ‘mais indígena’.”

“Espero que o documento final do sínodo dê ênfase ao conceito da ecologia integral, que existe desde o ‘Laudato Si’”, disse Nobre ao Valor, referindo-se à encíclica do papa de 2015.

“É uma maneira importante de olhar para a Amazônia, de forma integrada, como um sistema cultural, social, econômico e ambiental”, concluiu.

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Brasil tem política indígena racista, diz relatora da ONU

Lucas Ferraz 

09/10/2019

 

 

Pela primeira vez um sínodo organizado pelo Vaticano convidou uma autoridade da ONU para as discussões. Trata-se da filipina Victoria Tauli-Corpuz, relatora das Nações Unidas para o direito dos povos indígenas, um dos principais temas abordados pela igreja no evento sobre a Amazônia.

Ela é uma das 12 especialistas envolvidas nos debates - o sínodo acontece em Roma até o dia 27.

Em entrevista ao Valor, Tauli-Corpuz disse estar especialmente preocupada com a situação brasileira, sobretudo por causa da postura adotada pelo governo de Jair Bolsonaro, que ela classificou de “abertamente racista”, ao encorajar a entrada de corporações e produtores rurais nos territórios indígenas para cultivar e explorar recursos minerais.

“Quando você diz que os índios têm um grande número de terras e que elas não são utilizadas, isso é muito racista, porque eles usam a terra. Eles não usam para extrair ou explorar economicamente os recursos minerais, mas utilizam esses recursos de forma sustentável. É uma discriminação contra o modo de viver dos indígenas dizer como eles devem ou não devem viver em seus territórios. Não se pode impor um pensamento ou um tipo de comportamento, isso é racismo”. Essa postura, segundo ela, é uma nova forma de colonização, ecoando as palavras ditas na abertura do sínodo pelo papa Francisco.

Um dos aspectos mais sensíveis no Brasil, frisa a filipina, é cuidar da integridade dos índios isolados, que podem ser seriamente impactados por cortes e contingenciamentos promovidos pelo governo e por invasões de suas terras por madeireiros e grileiros, conforme se registrou neste ano em Rondônia, por exemplo. O coordenador que cuidava do setor na Funai (Fundação Nacional do Índio) foi exonerado neste mês, sem qualquer explicação.

“Se a situação continuar dessa maneira, com o processo de invasão em curso, veremos um genocídio. Os índios isolados são muito vulneráveis com a entrada de outras pessoas em suas terras, eles podem ficar doentes, pois não têm imunidade contra doenças muitas vezes simples.”

Indígena da etnia Kankanaey, originária do norte das Filipinas, e relatora da ONU desde 2014, Tauli-Corpuz diz que é muito triste ver pessoas sem “nenhuma competência” sendo nomeadas pelo governo para lidar com o tema. Ela também chamou de “lamentável” o descaso do ministro da Justiça, Sergio Moro, com a questão indígena. A Funai, parte da estrutura do ministério de Moro, vem sendo esvaziada nos últimos anos, processo que se acentuou sob Bolsonaro.

Tauli-Corpuz conta que já enviou questionamentos para Brasília, mas que as respostas oficiais não são frequentes: “Eles não ficaram muito felizes comigo, porque falei bastante a respeito e eles pensaram que não deveria fazer isso. Mas essa é minha função. Proteger os índios deveria ser uma obrigação, o Brasil ratificou convenções internacionais. E a Constituição brasileira também prevê a defesa dos direitos dos indígenas”.

Em Roma, na segunda-feira, a relatora da ONU participou de debate organizado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) numa igreja próxima do Vaticano com índios brasileiros de diversas etnias - ela já visitou o Brasil, a última vez há dois anos. Eles expuseram situações e ameaças que também estão sendo discutidas no sínodo, como o uso de terras indígenas para exploração mineral.

Tauli-Corpuz disse que eventos como o organizado pelo Vaticano são essenciais para mobilizar a opinião pública. “Há um limitação da ONU sobre o que pode ser feito. É preciso engajar outros atores nessa questão, e a Igreja tem uma influência muito grande na população.”

Entre os nove países amazônicos abordados no sínodo, ela aponta o Equador como outro caso que apresenta uma situação delicada, com prisões e invasão de terras dos indígenas, um dos protagonistas da crise que eclodiu no país nas últimas semanas por causa dos protestos contra o presidente Lenín Moreno - os atos se iniciaram após ele ter eliminado os subsídios dos combustíveis.

Maior autoridade do assunto nos debates em Roma, Tauli-Corpuz disse estar muito impressionada com a documentação reunida pelo Vaticano - “é clara e retrata muito bem os problemas enfrentados pelos índios na Amazônia”. “A Igreja demonstra um verdadeiro respeito pela espiritualidade e religiosidade dos indígenas e parece saber como atuar com eles em suas terras. Isso me surpreendeu. Os indígenas tem uma grande expectativa de que o evento realmente os ajude a mudar a situação de abandono na floresta”.