Valor econômico, v.20, n.4854, 09/10/2019. Opinião, p. A10

 

Brasil ainda está muito longe da liberalização do câmbio 

09/10/2019

 

 

O projeto de liberalização cambial a ser encaminhado pelo Banco Central e Ministério da Economia ao Congresso é tão ambicioso a ponto de parecer irreal. Com a intenção secundária, embora importante, de livrar-se de entulhos burocráticos, ele explicita um objetivo muito polêmico na teoria e na prática: a livre movimentação de capitais. Seu artigo 2 é claro: “As operações no mercado de câmbio podem ser realizadas livremente, sem limitação de valor” a partir de sua aprovação, desde que feitas de acordo com a lei e segundo os regulamentos do Banco Central. Na prática, define limites do que poderá ser a política econômica não só do atual governo como dos futuros.

Há a óbvia necessidade de modernizar a legislação cambial atual, dezenas de artigos espalhados por um labirinto de dispositivos legais, alguns deles do início do século XX. Mas a meta final que dá a direção dos passos intermediários é pôr fim ao curso forçado do real, algo que livrou o Brasil de encrencas maiores do que as que enfrentou até agora.

O projeto dispõe que a livre movimentação de capitais está em linha com o que fazem as economias avançadas e as principais economias emergentes, ignorando o exemplo mais importante, que é o da China, segunda maior economia do mundo, e das dinâmicas economias asiáticas, que encontraram formas mais eficientes de adaptação ao mundo globalizado do que a pretensão de tornar conversíveis suas moedas. O Brasil está longe de possuir as condições econômicas que permitam essa abertura. A promessa de que a liberalização será feita com “prudência” tem de ser vista com algum ceticismo. As diretorias do Banco Central mudam, assim como seus graus de sensatez, mas as leis ficam.

O Brasil não é sequer grau de investimento para poder dar passos iniciais nesta direção. Continua enredado em uma terrível armadilha fiscal, sua economia continua basicamente instável - foi do quase paraíso em 2010 ao inferno em 2014, início da maior recessão da história - e não têm forças para sustentar crescimento razoável por um par de anos.

A livre movimentação de capitais tem de ser vista de forma pragmática, não ideológica. Pode funcionar ou não, dependendo de uma série de características históricas, políticas e econômicas. A China chegou ao que é fazendo o contrário do que prega o anteprojeto do BC. Ela não tem a menor intenção de liberar a conta de capitais em breve, se é que algum dia o fará. A experiência latino-americana também é mais negativa que positiva sobre este ponto.

O México quebrou duas vezes, em 1982 e 1995, por políticas macroeconômicas erradas das quais sobressai a dívida pública contraída majoritariamente em dólares, combinada com desequilíbrios desastrosos no balanço de pagamento. Teve melhor sorte que a terceira maior economia latina, a Argentina, que sobrevive de crise em crise, sempre beirando a ruína, sem abandonar uma política cambial liberal. O México pelo menos tem agora a justificativa econômica para isso, ao fazer parte da área do dólar, sacramentada por um acordo econômico com EUA e Canadá.

A Argentina foi tão longe quanto possível na liberalização cambial, com resultados tétricos - não tem mais moeda nacional. Sua mais extravagante experiência com a conversibilidade foi o “currency board” do ex-ministro Domingo Cavallo, que prometia livrá-la de suas mazelas: inflação muito alta, déficit público insustentável e baixas reservas internacionais. Terminou em tragédia, com um presidente fugindo da sede do governo de helicóptero diante de massas enfurecidas.

A situação argentina dá vários exemplos do que não se deve fazer. Além da escassez de dólares criada por déficits em conta corrente, há o insaciável apetite doméstico pela moeda americana, saciado pela permissão das contas bancárias em divisas externas, cujos montantes podem ser livremente remetidos ao exterior. Com demanda tão grande, acumular reservas internacionais tornou-se bem mais difícil e a saída argentina foi sempre a emissão de dívida soberana em dólares, com resultados conhecidos. Mauricio Macri seguiu o caminho de sempre e sua bancarrota, política e econômica, é a mais recente, não a última.

As condições estruturais da economia precisam mudar muito antes de o Brasil sequer pensar em dar este passo. Serão necessários anos a fio de crescimento sustentado com inflação civilizada, aumento da produtividade e juros baixos. Afirmar, como a exposição de motivos do projeto, que a liberdade cambial “é compatível com o atual grau de inserção da economia brasileira nas cadeias globais” é inverter a ordem dos fatores, com consequências imprevisíveis.