Valor econômico, v. 20, n. 4853, 08/10/2019. Brasil, p. A6

 

Homicídios caem com arranjos entre facções e nova demografia

Anaïs Fernandes

08/10/2019

 

 

 Recorte capturado

Assassinatos mantêm tendência e recuam 24% entre janeiro e maio deste ano em relação ao mesmo período de 2018

Enquanto governantes brasileiros surfam, com maior ou menor mérito, na queda generalizada do número de homicídios neste ano no país, especialistas em segurança pública buscam razões mais consistentes para o fenômeno. Mudanças demográficas, novos arranjos entre facções criminosas e a manutenção de políticas públicas entre gestões estão no rol de explicações.

O número de vítimas de homicídio doloso caiu 24% nos cinco primeiros meses de 2019, na comparação com igual período de 2018. De janeiro a maio (último dado disponível), foram 16,7 mil mortes, segundo o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), a partir dos boletins de ocorrência dos Estados e do Distrito Federal.

A redução nos homicídios já era observada em 2018, quando o número de vítimas havia caído para 22 mil até maio, ante 24,4 mil no mesmo período do ano anterior.

As mortes violentas escalavam desde 2015 - início da série disponibilizada pela plataforma do Sinesp. A taxa de homicídio a cada 100 mil habitantes encerrou aquele ano a 24. Em 2017, atingiu o pico de 27,1. No ano passado, voltou a 23,6.

“Essa queda de 2018 e 2019 é algo estável e que vai continuar ou apenas voltamos ao patamar em que estávamos antes do soluço de 2017?”, questiona Arthur Trindade, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), professor da Universidade de Brasília (UnB) e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal.

Uma mudança estrutural no nível de violência do país poderia ser explicada, segundo Trindade, por alterações demográficas, como o envelhecimento da popopulação. “Quem mata e morre mais são os jovens. Conforme diminui a proporção de jovens, diminuem também as pessoas que vão matar e as que vão morrer.”

O mais recente Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com o Fórum de Segurança Pública, contabiliza 35,8 mil jovens assassinados no Brasil em 2017. Homicídios foram a causa de 52% dos óbitos de jovens de 15 a 19 anos e de 49% para pessoas de 20 a 24.

Mas compreender o quadro geral de queda dos homicídios no país requer também conhecer a situação de cada Estado, ressaltam os especialistas. O número de vítimas cai em 25 das 27 unidades da federação - apenas Tocantins e Piauí apresentam alta. Somente três Estados, no entanto, são responsáveis por quase metade (45%) do movimento geral: Ceará, Bahia e Rio Janeiro.

O Ceará, por exemplo, registra a maior redução em número absoluto de vítimas: passou de 1.962 até maio de 2018 para 905 neste ano, uma queda de 54%. O Estado foi marcado em 2017 por intensos confrontos entre grupos criminosos como o carioca Comando Vermelho, o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e o local Guardiões do Estado.

A escalada das mortes violentas relacionadas a brigas entre facções ajuda a explicar, inclusive, o mencionado “soluço” na taxa de homicídios do país em 2017. “Conforme o PCC chega a novos Estados, vai produzindo reações e isso muda o patamar de homicídios, principalmente no Nordeste. Na anarcoeconomia, quanto mais concorrência, maior o conflito. Não existe o papel mediador que cabe ao Estado no caso do mercado legal. O espaço é ganho na base da violência e da força”, diz Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP).

A ameaça de que esse “barril de pólvora” explodiria, sobretudo dentro dos presídios, no entanto, não avançou, segundo o pesquisador. “Os presos começaram a ser punidos e os líderes foram transferidos para presídios federais, ao mesmo tempo em que as próprias facções perceberam que os conflitos custam caro para elas. Houve uma espécie de acordo tácito entre os grupos e desde o fim de 2017 a situação vai se distensionando”, explica.

Só o Nordeste, que representa cerca de 40% de todas as mortes no país, viu os homicídios despencarem 31% neste ano. No Ceará, a taxa de homicídios chegou a 55,5 a cada 100 mil habitantes em 2017, mas caiu para 48,8 no ano passado.

“Embora o governador [do Ceará] Camilo Santana [PT] tenha sido reeleito, ele trocou secretário e mudou a forma de lidar com o sistema prisional. Ficamos mais seguros para dizer que a mudança na relação prisão-rua está afetando os números. Se isso decorre de decisões do Estado ou das próprias facções, é difícil afirmar, mas é provável que seja uma combinação”, diz Joana Monteiro, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Outros Estados são citados por especialistas como exemplos de entes que conseguiram adotar políticas públicas de segurança mais consistentes, como Espírito Santo, Pernambuco e São Paulo, além do Distrito Federal.

“Parte da explicação é que são políticas que se consolidaram porque não ficaram dependentes da liderança máxima, conseguiram envolver as secretarias e os níveis intermediários e continuaram rodando. Não descarto que tenha havido novos investimentos, mas é difícil dizer que eles já tenham gerado resultado. Olhando quem investiu em política de gestão para resultado, a gente identifica continuidades, mesmo quando há troca de governo”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

Apesar de a segurança pública ser responsabilidade mais imediata dos Estados, o governo federal deve ter o papel de fomentar diretrizes e usar sua capacidade de financiamento - principalmente via Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) - para induzir tais metas, dizem os pesquisadores. Para eles, no entanto, ainda não houve tempo suficiente para que medidas do governo de Jair Bolsonaro tivessem impacto significativo na atual queda dos homicídios.

“As propostas são principalmente de alteração legislativa, envolvendo endurecimento penal, armamento, excludente de ilicitude. Do ponto de vista federal, não tem nenhuma ação que sugira que o governo tem ingerência sobre essa queda. Do ponto de vista do discurso simbólico, há uma grande mudança, porque os governos passados não falavam diariamente sobre segurança. Para o eleitorado, dá a impressão de que esse governo está se movimentando”, diz Trindade, do Fórum de Segurança Pública.

Procurado, o Ministério da Justiça diz que a pasta tem focado a redução da criminalidade violenta e do crime organizado. “A estratégia de isolamento dos maiores líderes da facção criminosa foi uma das prioridades”, afirma em nota.

Segundo o ministério, a queda no número de homicídios no país também é resultado da atuação integrada entre governos federal e locais. Como exemplo, cita o projeto-piloto “Em Frente, Brasil”, lançado no fim de agosto, em que cinco municípios -Ananindeua (PA), Paulista (PE), Cariacica (ES), São José dos Pinhais (PR) e Goiânia (GO) - recebem R$ 4 milhões para investir em segurança.

Para Trindade, o valor ainda é modesto. O ministério diz, no entanto, que as cidades selecionadas registraram queda de 53% nos homicídios em setembro, ante igual período de 2018.

Sobre o orçamento de R$ 495,8 milhão do Fundo Nacional de Segurança Pública para 2019, o ministério diz que R$ 233 milhões foram empenhados. Para o próximo ano, a previsão é de um montante disponível menor, de R$ 435,3 milhões. Mas a pasta afirma que o Ministério da Economia sinalizou com o envio de uma nova proposta “majorada significativamente”.