O Estado de São Paulo, n. 45937, 26/07/2019. Notas e Informações, p. A3

 

Um inimigo mortal

26/07/2019

 

 

Saneamento é o setor mais precário da infraestrutura do País e o que mais expõe as chagas de suas desigualdades. É preciso pressionar a sociedade civil e o poder público a atacar o problema.

O Ranking do Saneamento Básico publicado pelo Instituto Trata Brasil não revela nada de novo. E é justamente este nada que estarrece. Em completa estagnação, o saneamento é o setor mais precário da infraestrutura do País e o que mais expõe as chagas de suas desigualdades. Paralisado como está, a cada dia que passa o Brasil fica mais longe de atingir a meta de universalização do abastecimento de água prevista pelo Plano Nacional de Saneamento para 2023, e assim de satisfazer um direito fundamental consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: o acesso à rede de água e esgoto.

Estima-se que para atender toda a população seria necessário investir anualmente R$ 21,6 bilhões durante 20 anos. Em 2011, o País investiu metade disso, R$ 10,91 bilhões, subindo para R$ 13,29 bilhões em 2014. Mas em 2017, último ano computado, o investimento encolheu para R$ 10,90 bilhões, o menor de uma década que já se pode dar por perdida. Entre 2016 e 2017, a população com acesso a coleta de esgoto nas 100 maiores cidades não aumentou sequer um dígito porcentual, saindo de 72,15% para 72,77%, enquanto o volume de esgoto tratado passou de 54,33% para 55,61%. Nesse ritmo o Brasil não terá uma cobertura universal antes de 2060. Hoje, 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada, cerca de 100 milhões, quase metade da população, não têm coleta de esgoto e 4,4 milhões não têm nenhuma forma de esgoto, fazendo suas necessidades a céu aberto.

Uma das consequências é a proliferação da poluição e de doenças. Em 2013 foram registradas 340 mil internações por infecção gastrointestinal. Calcula-se que por falta de cobertura 330 pessoas morrem a cada ano por infecções evitáveis. Nas águas não saneadas prolifera o Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chikungunya. Em 2017 o Brasil despejou no solo e nas águas fluviais e marítimas o equivalente a 5.600 piscinas olímpicas de esgoto não tratado por dia. Em média, a cada 100 litros de água potável 38 se perdem, o equivalente a R$ 11,3 bilhões só em 2017, mais do que foi investido em saneamento. Calcula-se que cada R$ 1 aplicado em saneamento gere uma economia de R$ 4 em gastos com saúde. Segundo o Trata Brasil, a universalização do saneamento traria ganhos econômicos e sociais em áreas como educação, produtividade, turismo e valorização imobiliária, que somados chegariam a R$ 1,12 trilhão em duas décadas.

Note-se que a situação não é uma decorrência, por assim dizer, “natural” do estágio de desenvolvimento do País. O Brasil, 8.ª economia do mundo, ocupa a 102.ª posição no ranking de saneamento da Organização Mundial da Saúde, bem atrás de países vizinhos em condições socioeconômicas piores, como Paraguai, Venezuela ou Costa Rica, além de Usbequistão, Tonga e a média do Norte da África, entre outros.

Isso só evidencia a morosidade indecente do poder público em atrair a iniciativa privada, como já se fez na energia, telecomunicações ou transporte. As parcerias público-privadas representam apenas 6% do mercado, mas respondem por 20% do investimento. Apesar disso, as companhias estaduais, no limite de suas operações, sem capacidade de investimento ou endividamento, bloqueiam as licitações junto à concorrência. Seu lobby foi uma das razões que frustraram a votação da Medida Provisória do governo Temer que regularia a participação privada. Em junho o Senado aprovou o Projeto de Lei 3.261, que amplia a competição, ao mesmo tempo que permite licitações em blocos de municípios para agregar os menos rentáveis. O projeto prevê ainda gratuidade e subsídios para famílias de baixa renda, e apoio da União e Estados aos municípios menos desenvolvidos. A Câmara dos Deputados, agora, precisa agir.

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Interferências indevidas

26/07/2019

 

 

A suspensão da nova tabela de fretes faz parte de uma vergonhosa sucessão de erros. Não bastasse a evidente inconstitucionalidade da interferência no livre mercado representada pela fixação de preços mínimos do transporte rodoviário de cargas, o governo de Jair Bolsonaro conseguiu agregar ainda dois novos equívocos ao imbróglio. Aceitou ser refém das ameaças dos caminhoneiros e ainda interferiu desbragadamente na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Para agravar o quadro, a diretoria da agência reguladora, abandonando qualquer escrúpulo de autonomia institucional, curvou-se às pressões do Palácio do Planalto e determinou a suspensão da Resolução 5.849/2019. No momento, vale a atualização de valores feita em abril deste ano.

Em 16 de julho, a ANTT publicou a Resolução 5.849/2019, atualizando regras e valores relativos aos “pisos mínimos, referentes ao quilômetro rodado na realização do serviço de transporte rodoviário remunerado de cargas”. Era mais uma versão da tabela de fretes, oriunda da “Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas”, que foi instituída no ano passado pela Medida Provisória (MP) 832/2018, depois convertida na Lei 13.703/2018. Evidentemente inconstitucional, essa legislação foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), que inexplicavelmente ainda não se pronunciou.

Insatisfeitos com os valores fixados pela Resolução 5.849/2019, os caminhoneiros ameaçaram promover paralisações de estradas e rodovias. Diante da ameaça, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, expediu decisão cautelar suspendendo temporariamente a nova tabela do frete rodoviário. Era o governo federal, uma vez mais, adotando a incompreensível postura de submissão perante alguns grupos de caminhoneiros. Em vez de defender o interesse público e exigir o cumprimento da lei e da ordem, o Executivo federal rendeu-se às bravatas de alguns. Na decisão, o ministro ainda solicitou que a ANTT revisse sua posição.

Em reunião extraordinária ocorrida no mesmo dia do pedido do ministro Tarcísio Freitas, a diretoria da agência suspendeu a Resolução 5.849/2019. A explicação da ANTT sobre a suspensão da medida é uma confissão da sua falta de independência em relação às pressões políticas do Executivo. A agência reconhece que a resolução foi resultado de uma audiência pública que contou com “a participação de transportadores autônomos, empresas e cooperativas de transporte, contratantes de frete, embarcadores e diversos outros agentes da sociedade”.

Mas, após o pedido do Ministério da Infraestrutura, os diretores da ANTT optaram por suspender cautelarmente a Resolução diante das “notícias iminentes de greve de caminhoneiros” e da “insatisfação de parcela significativa” da categoria. O órgão regulador diz que levou em conta a necessidade de “evitar dano irreparável ou de difícil reparação”, como “prejuízos econômicos em paralisações” e a redução da “instabilidade no setor de cargas”.

“A Agência reitera o compromisso com todos os envolvidos de manter um diálogo constante, a fim de buscar um consenso no setor de transporte rodoviário de cargas e pretende ampliar o debate sobre a matéria”, diz a nota da ANTT. É realmente peculiar que o órgão regulador, em vez de cumprir sua missão institucional, opte por ser submisso ao governo e às ameaças de alguns caminhoneiros que não desejam nenhum tipo de diálogo. A disjuntiva desses grupos de pressão é sempre a mesma: ou o governo faz o que querem ou paralisam o País.

Na campanha eleitoral do ano passado, Jair Bolsonaro apoiou a greve dos caminhoneiros. Agora na condição de presidente da República, Jair Bolsonaro continua atuando como se fosse representante dos interesses dessa categoria profissional. É preciso que o Executivo assuma incondicionalmente a defesa do interesse público e que o Judiciário declare o quanto antes a inconstitucionalidade da Lei 13.703/2018.