O globo, n.31503, 07/11/2019. Mundo, p. 21

 

Relação desgastada 

Janaína Figueiredo 

Gabriel Shinohara 

Leandro Prazeres 

Jussara Soares 

07/11/2019

 

 

A tensão entre o governo Jair Bolsonaro( PSL) e o futuro presidente da Argentina, o peronista Alberto Fernández, voltou acrescer ontem e gera preocupação pelo impacto que uma crise bilateral poderia ter num fluxo comercial que no ano passado alcançou US $26 bilhões. Bolsonaro publicou em sua conta no Twitter que as empresas L’Oréal, Honda e MWM haviam decidido fechar suas fábricas na Argentina e transferi-las para o Brasil, informação que as três companhias negaram e que levou o presidente a se desculpar. Em paralelo, após o jornal Clarínter noticiado que o vice-presidente Hamilton Mourão iria à posse de Fernández, o governo disse que enviará o ministro da Cidadania, Osmar Terra. Mais cedo, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara, presidida pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), aprovou um requerimento de moção de repúdio a Fernández, entre outras coisas, por “ativismo político”.

Os três episódios seguem-se à decisão de Bolsonaro de não parabenizar Fernández por sua vitória, como resposta ao respaldo público ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por parte do presidente eleito argentino.

À noite, o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, assegurou que Bolsonaro se equivocou ao postar uma informação errada sobre a Argentina eque o presidente“reconheceu” o erro e pedia desculpas. Segundo revelou o colunista do GLOBO Lauro Jardim, um amigo enviou por WhatsApp reportagens antigas ao chefe de Estado (a que o presidente citou era de 2001), que foram postadas sem antes serem checadas. Muito antes do pedido formal de desculpas, o post fora apagado.

PARCEIRO COMERCIAL VITAL

Em ambos os países, a situação desperta temores. Economistas que assessoram o futuro presidente da Argentina, que tem optado por não responder diretamente aos ataques que recebe do governo brasileiro, acreditam que os interesses econômicos vão pesar mais do que a briga através da mídia e redes sociais.

— As teimosias públicas não podem ser mais importantes do que a opinião dos empresários e dos setores privados dos dois países — disse ao GLOBO um economista que já ocupou altos cargos em governos anteriores e integra a lista de colaboradores de Fernández.

Para ele, que já chefiou importantes negociações internacionais, “claro que o que estamos vendo e ouvindo preocupa, mas a expectativa é de que outros fatores acabem prevalecendo”.

A Argentina é o terceiro sócio comercial do Brasil, depois de China e EUA. O país é o principal destino das manufaturas brasileiras, apesar da grave crise econômica que atravessa. Em palavras do embaixador José Alfredo de Graça Lima, um dos mais importantes negociadores comerciais que o Itamaraty teve nas últimas décadas, “o que todos esperamos é que a retórica seja superada pela realidade”.

— Existem momentos de ruptura e momentos de descontinuidade. Acho que estamos atravessando um momento de descontinuidade na relação bilateral, principalmente no discurso — disse o embaixador.

Para ele, “as relações são definidas principalmente por agentes econômicos”, o que o deixa “confiante de que o processo (de integração) vai continuar”.

— Ir ou não à posse são questões mais da diplomacia... Acho e espero que nada do que estamos observando afete o vínculo econômico e o que une nossas sociedades.

Do lado argentino, diante de cada nova alfinetada por parte do Brasil a resposta

tem sido não reação direta, mas sim o envio de recados indiretos. Em seu último dia de visita ao México, primeiro destino internacional desde que derrotou o presidente Mauricio Macri nas urnas, Fernández defendeu a “união” do que chamou de países progressistas latino americanos.

— Temos de construir um eixo para lutar contra a desigualdade na região—declarou o futuro presidente argentino, que, dois dias antes, afirmara que sua eleição e a do mexicano Andrés Manuel López Obrador foram consequência da ineficiência de governos como os de Macri, Bolsonaro e do chileno Sebastián Piñera.

A troca de farpas começou durante a campanha eleitoral e por parte de Fernández existe a decisão firme de não abrir mão de participar da campanha a favor da liberação de Lula. Como candidato, o presidente eleito argentino visitou o ex-presidente na prisão, em Curitiba, e no dia de seu triunfo gritou “Lula livre” diante de uma multidão. A atitude de Fernández foi considerada uma provocação e uma ingerência por parte do governo Bolsonaro, e a irritação que não consegue esconder levou o presidente acometer o erro, assumido, de divulgar informações falsas sobre empresas que operam na Argentina. No post apagado, Bolsonaro justificou a mudança das empresas pela suposta “confiabilidade do investidor” no Brasil e disse que as novas fábricas trariam mais emprego ao país.

ASSESSOR INSISTE NO ERRO

Embora o presidente voltasse atrás e excluísse o post de sua conta no Twitter, oito horas depois, seu assessor especial, Arthur Weintraub, insistiu no tema na mesma rede social: “Empresas grandes fechando fábricas na Argentina e se transferindo pro Brasil. Isso é confiabilidade. Investimento que vai aumentar empregos no País. Agora imagine se não fosse o PR Bolsonaro no governo. Imagine se fosse um que grita ‘enjaulado livre’ presidente. Na Argentina tem.”

Como relacionamento bilateral estremecido e agrande incógnita sobre como será a convivência entre Bolsonaro e Fernández quando o argentino assumir o poder, a realidade é que, pela primeira vez em 17 anos, um chefe de Estado brasileiro não estará na posse de um colega argentino.