Título: Regra criada pelo BC pune o bom pagador
Autor: D'Angelo, Ana
Fonte: Correio Braziliense, 13/10/2012, Economia, p. 10
A cada corte da Selic, quem pretende quitar sua dívida antes do prazo tem desconto menor. Seguindo proposta do Banco Central, Conselho Monetário Nacional estabeleceu em 2007 essa medida que, de acordo com promotores e juízes, contraria a lei
É tarefa árdua para o governo garantir que os brasileiros sejam beneficiados pelos cortes na Selic — reduzida pela 10ª vez consecutiva nesta semana. Houve esforço, por exemplo, para fazer com que os bancos oficiais oferecessem juros menores nos empréstimos, pressionando, por meio da concorrência, as instituições privadas a segui-los.
O que poucas pessoas percebem, porém, é que há uma regra chancelada pelo próprio Executivo há cinco anos que faz a queda na Selic prejudicar devedores. No atual ambiente de juros cadentes, quitar o financiamento de um carro ou um empréstimo pessoal antes do prazo previsto resulta em desconto muito menor do que manda a letra da lei.
O saldo devedor é estabelecido no momento em que o empréstimo é contratado com base no juro em vigor. Ao antecipar o pagamento de prestações, o devedor espera que a taxa contratada na época, incorporada ao saldo, seja eliminada. Não é o que acontece. A Resolução 3.516, criada em dezembro de 2007 pelo Conselho Monetário Nacional (CNM), determina que o desconto não é pela taxa anterior, mas pela atual. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), lei 8.178, diz o contrário.
Como a regra do CMN é complexa (leia quadro ao lado), e as garantidas do CDC pouco conhecidas, muitos consumidores não se dão conta de que a redução da dívida é menor do que deveria ser. A medida também dificulta a transferência do débito de um banco para outro, a chamada portabilidade, que poderia favorecer a concorrência no sistema financeiro e diminuir a inadimplência.
Fator externo "A resolução é absurda. A Lei 8.178 é clara quando diz que o abatimento dos juros tem que se basear na taxa de contrato e no prazo que falta. Não pode haver um fator externo", afirma o promotor de Justiça Leonardo Roscoe Bessa, da Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPFDFT). Ele critica ainda a complexidade da norma. "Já existem muitos abusos. O consumidor fica sem saber se o valor a pagar fornecido pelo banco está correto", diz Bessa.
Para os consumidores que recorrem à Justiça para exigir o cumprimento do CDC, a decisão dos tribunais brasileiros é sempre a mesma: determinam que o cálculo do saldo devedor tenha como base a taxa pactuada no contrato. "Dentro da escala valorativa das normas, uma resolução está sempre abaixo da lei. No que ela exorbita o que manda a lei, não tem validade, não prevalece sobre o CDC", explica um juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal especializado em direito do consumidor. Para saber o valor correto a pagar, os consumidores podem procurar os postos do Procon-DF. É preciso levar a cópia do contrato que comprova a taxa de juros cobrada.
O valor pago a mais pelo cliente que quiser quitar sua dívida dependerá da Selic válida na data em que assinou o contrato, dos juros cobrados no empréstimo e da quantidade de parcelas a vencer. Quanto mais rápido o consumidor liquidar seu débito, menor será o desconto concedido pelos bancos e maior será o total que ele pagará para se livrar da dívida. Nos exemplos no quadro ao lado, a diferença chegou a R$ 655. A Resolução 3.516 concorda com o CDC em uma parte das situações: para os empréstimos feitos por até um ano ou com 12 prestações restantes, a resolução garante o abatimento conforme os juros do contrato.
Dupla vantagem A lógica da Resolução 3.516 é a seguinte: se a Selic está mais baixa na data da quitação em relação ao início do contrato, o desconto no valor da dívida também fica menor; caso a Selic esteja maior, o abatimento é mais elevado. A resolução foi proposta em 2007 pela diretoria do BC, que era comandada por Henrique Meirelles. Além do presidente do BC, integram o CMN os ministros da Fazenda e do Planejamento.
O problema da nova regra é que ela só beneficia o cliente em situação de alta dos juros. Em períodos de queda, como agora, ele sai perdendo. O banco leva vantagem mesmo quando é obrigado a dar desconto maior em caso de elevação da Selic, porque os novos empréstimos também passam a ter taxas mais altas. Nesse caso, é interessante para o banco receber logo os recursos de um contrato concedido a taxas menores, para emprestar a um novo cliente a juros mais altos.
Questionado pelo Correio sobre o fato de a resolução contrariar o CDC e prejudicar os clientes que querem quitar suas dívidas, o BC limitou-se a responder que "tem adotado uma política regulatória voltada para a redução do spread (lucro dos bancos com os juros) e das tarifas bancárias, além de buscar sempre atuar de forma harmônica com o Ministério Público e os órgãos de defesa do consumidor, inclusive por meio da celebração de convênios de cooperação técnica".
» Benefício a bancos
O CMN criou essa forma complexa de cálculo do saldo devedor como compensação aos bancos por ter proibido que cobrassem, a partir de dezembro de 2007, taxa dos clientes em decorrência da liquidação antecipada — o encargo chegava a 7% do valor da dívida. A cobrança dessa taxa era permitida pela Resolução 3.401 do CMN, de setembro de 2006, que vinha sendo derrubada pela Justiça e combatida pelo órgãos de defesa do consumidor.