Título: DF sob o efeito de psicotrópicos
Autor: Ulhoa, Marcela; Melo, Max Milliano
Fonte: Correio Braziliense, 13/10/2012, Saúde, p. 19

No Distrito Federal, a venda de antidepressivos chegou a crescer 83% em dois anos. O problema se repete no resto do Brasil. Segundo pesquisa, a falta de profissionais e a banalização dos medicamentos estão entre as razões do problema

Uma em cada cinco pessoas no Brasil tem algum tipo de transtorno mental, de acordo com o Ministério da Saúde. O tratamento desses distúrbios quase sempre implica o uso de drogas psicoativas, medicamentos que afetam o estado mental do usuário. Mas o próprio governo e especialistas reconhecem que há um exagero na prescrição das drogas. No começo deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostrou-se preocupada com o aumento da venda de antidepressivos e calmantes — só a de clonazepam, conhecida como Rivotril, pulou de 29,4 mil unidades em 2007 para 10,5 milhões em 2010. O Distrito Federal segue a onda tarja preta: os cinco remédios mas vendidos nas farmácias — tanto os industrializados quanto os manipulados — são psicotrópicos.

De acordo com dados da Anvisa, enquanto em 2009 eram vendidas no DF 4,91 caixas de Rivotril para cada 100 habitantes, em 2011 esse índice pulou para 7,4, um aumento de mais de 57%. Os demais psicotrópicos acompanharam a alta. O consumo de fluoxetina cresceu em dois anos 83% e o de alprozalam, 45% (veja quadro). Segundo Filipe Braga, psicólogo do Centros de Atenção Psicossocial (Caps) II do Paranoá, como nem sempre os pacientes são atendidos por especialistas, o uso de psicotrópicos acaba sendo a solução padrão. "Em Brasília, muitos dos pacientes que têm crise às 2h acabam indo para o pronto-socorro de hospitais gerais ou para o Hospital Psiquiátrico de São Vicente de Paula, em Taguatinga, o único que fica aberto todo o tempo para transtornos mentais."

Até durante o dia, ressalta Braga, o contato com profissionais especializados é difícil. "Não tem como colocar a culpa só nos psiquiatras, o erro está no sistema, em como a saúde mental é tratada no Brasil. É preciso que haja o diálogo, o carinho, mas isso não é possível com 800 pacientes para pouquíssimos profissionais", critica o profissional.

Diretor de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do DF, Augusto César de Farias Costa reconhece que as condições de atendimento distantes do ideal impactam diretamente no consumo de remédios. "Se o Estado não promover a contratação de funcionários com número suficiente para atender todos pacientes, tanto na área pública quanto privada, a tendência é que o tratamento fique focado exclusivamente na medicação", avalia.

Segundo Augusto César, melhoras no sistema estão previstas. "São 2,6 milhões de habitantes. Se considerados os atendimentos do Entorno, chega a cerca de 4 milhões. A rede que temos hoje necessita de ampliação. Por isso, o plano diretor da pasta prevê a instalação de 46 Caps até 2015." O diretor destaca ainda que a prescrição excessiva de calmantes não é uma realidade apenas brasileira. "É mundial. Dão ao medicamento um poder que ele não tem. Há um exagero na valorização dos remédios como se a medicina se reduzisse apenas ao poder das substâncias", opina.

Ao constatar um quadro de hipermedicação de pacientes com transtorno mental na rede de atenção primária de saúde e nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, um grupo de pesquisa do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) constatou que problemas como a falta de profissionais e a banalização do consumo desses medicamentos contribuem para que os limites sejam ultrapassados.

A análise foi feita em mais de um ano de pesquisa e, segundo especialistas, os problemas encontrados se repetem no resto do país. A tese é confirmada pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). De acordo com Antônio Geraldo, a realidade dos Caps é a de muitos pacientes para poucos médicos, o que dificulta um atendimento mais cuidadoso e acaba, por vezes, resultando na medicação como processo paliativo para resolver rapidamente os sintomas.

Pouco diálogo Criados após a reforma psiquiátrica brasileira para substituir os hospitais psiquiátricos, os Caps realizam o tratamento dos pacientes na própria comunidade e junto das famílias, evitando a internação psiquiátrica integral. Apesar disso, segundo a professora Rosana Onocko-Campos, coordenadora da pesquisa, há pouco diálogo entre os profissionais da saúde e os usuários, que costumam desconhecer o motivo ou o tempo de duração das terapias medicamentosas. "É como se houvesse um ponto cego, o ponto menos reformado da reforma", critica.

A brasiliense Maria do Rosário, 49 anos, conta que toma remédio controlado desde os 8. Hoje diagnosticada com síndrome do pânico, ela ingere uma média de 360 comprimidos por mês de um antidepressivo com propriedades sedativas, que atua também como um bloqueador dos ataques de pânico. Sobre a possibilidade de diminuir as doses, ela cita uma frase que sua médica psiquiatra sempre fala: "Em time que está ganhando, a gente não mexe. Eu não consigo ficar sem remédio. Já estou há 41 anos tomando, se eu ficar sem, por causa da crise do pânico, não consigo nem sair de casa. Na rua, se uma pessoa vem andando na minha direção, já acho que ela quer me pegar", conta Maria.

O estudo ressaltou ainda a medicalização da população, fenômeno que transforma as situações corriqueiras em objeto de tratamento da medicina. "Muitas vezes, a mulher chega triste ao ambulatório porque brigou com o marido, o filho foi preso, mas não chega a ter um diagnóstico de depressão. Só que, para essas situações de tristeza, ela ganha um ansiolítico, um antidepressivo para acalmar os nervos", critica a pesquisadora. O Ministério da Saúde foi procurado pelo Correio para comentar sobre a hipermedicação de pacientes com transtorno mental no serviço público de saúde, mas afirmou "que a prescrição é uma relação entre médico e paciente e não cabe ao ministério intervir".

Ação no sistema nervoso Psicotrópicos são drogas que agem no sistema nervoso central. Podem ser ansiolíticos, indicados para diminuir a ansiedade e a tensão; calmantes, que causam de sonolência até o estado de inconsciência; e antidepressivos, usados para tratamento de depressão.

Sinal de alerta

Medicamentos industrializados mais vendidos no DF

Substância / Indicação / Caixas para cada 100 habitantes / Crescimento de 2009 a 2011 1º Clonazepam (Rivotril) / Calmante / 7,74 / 57% 2º Fluoxetina / Antidepressivo / 4,42 / 83% 3º Amitriplina / Antidepressivo / 3,26 / Não constava em 2009 4º Alprazolam / Calmante / 2,90 / 45% 5º Sertralina / Antidepressivo / 2,76 / Não constava em 2009

Medicamentos manipulados mais vendidos no DF

Substância Indicação Miligramas per capta Crescimento* 1º Anfepramona / Emagrecedor / 38,53 / 44% 2º Fluoxetina / Antidepressivo / 22,37 / 15% 3º Bupropiona / Antidepressivo / 9,52 / Não constava em 2009 4º Sertralina / Antidepressivo / 8,82 / 47% 5º Femproporex / Emagrecedor / 5,13 / 4%

Fonte: Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados/ Anvisa