O Estado de São Paulo, n. 45973, 31/08/2019. Política, p. A4

 

Governo 'criminaliza' Sínodo, afirmam bispos

Felipe Frazão

Tânia Monteiro

31/08/2019

 

 

Igreja. Religiosos rebatem em carta críticas de que encontro que vai discutir a situação da Amazônia representa ameaça à soberania nacional; Planalto vê ‘agenda de esquerda’

Em resposta a críticas do governo Bolsonaro, a Igreja Católica afirmou que os bispos envolvidos na organização do Sínodo da Amazônia estão sendo “criminalizados” e tratados como “inimigos da Pátria”. Em carta, religiosos rebateram avaliações de que o evento, que tem em sua pauta questões ambientais, represente alguma ameaça à “soberania nacional”, como argumenta o Palácio do Planalto e alas conservadoras do clero.

“Lamentamos imensamente que hoje, em vez de serem apoiadas e incentivadas, nossas lideranças são criminalizadas como inimigos da Pátria”, diz documento publicado ontem, após três dias de reuniões em preparação ao Sínodo – que está marcado para outubro, em Roma. Cerca de 120 religiosos católicos participaram do encontro em Belém.

A carta foi encomendada pelo cardeal d. Cláudio Hummes, nomeado pelo papa Francisco como relator do Sínodo e portavoz do pontífice para o tema, para desfazer o que os bispos consideram visões distorcidas sobre as intenções do Vaticano. Na única entrevista que deu após sua nomeação, d. Cláudio disse que o papa quer “pressionar” os governos locais a agir, entre eles, o Estado brasileiro, e defende ajuda internacional aos países afetados pelas queimadas – “criminosamente provocadas”, nas palavras da Igreja.

Como mostrou o Estado, a realização do Sínodo é vista com ressalvas por integrantes do governo brasileiro. O Palácio do Planalto quer conter o que considera um avanço da Igreja Católica na liderança da oposição a Bolsonaro, no vácuo da derrota e perda de protagonismo dos partidos de esquerda. Na avaliação da equipe do presidente, a Igreja é uma tradicional aliada do PT e estaria se articulando para influenciar debates antes protagonizados pelo partido no interior do País e nas periferias.

No evento em Roma, bispos de todos os continentes vão discutir a situação da Amazônia e tratar de temas considerados pelo governo brasileiro como uma “agenda da esquerda”, como situação de povos indígenas, mudanças climáticas provocadas por desmatamento e quilombolas. Procurado, o Palácio do Planalto não quis comentar a carta.

Ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Fernando Henrique Cardoso, o general da reserva Alberto Cardoso contestou o tom da carta dos religiosos. Segundo o general – que não faz parte do atual governo, mas é voz influente entre os militares –, os integrantes da Igreja “estão sendo criminalizados pelas atitudes deles de tentar interferir em questões da soberania”.

Para o ex-ministro, o grupo que trabalha no Sínodo da Amazônia apresenta como uma das metas da Igreja “uma nova ordem social e política” e “isso não é papel da Igreja, que tem como papel fazer orientação espiritual aos seus fiéis”. Soberania. A redação da carta foi coordenada pelo bispo emérito do Xingu (PA), d. Erwin Krautler. O documento relata que os bispos estão “angustiados” com a degradação ambiental e “horrorizados” com a violência na Amazônia. E afirma que foram os bispos brasileiros que solicitaram ao papa uma assembleia especial dedicada à floresta tropical.

A defesa da “responsabilidade mundial” pela preservação da Amazônia também é reforçada na carta divulgada ao final do encontro em Belém. Os bispos afirmam, no entanto, que a soberania dos países sobre os territórios não estaria em questão. “A soberania brasileira sobre essa parte da Amazônia é para nós inquestionável. Entendemos, no entanto, e apoiamos a preocupação do mundo inteiro a respeito deste macrobioma que desempenha uma importantíssima função reguladora do clima planetário.”

O “currículo” da Igreja na Região Norte virou um argumento dos bispos para justificar a participação deles num movimento de pressão política para mobilizar o governo a intervir na crise ambiental, agravada pelos recentes incêndios florestais. O arcebispo metropolitano de Belém, d. Alberto Taveira Corrêa, disse que a Igreja é a instituição que tem mais conhecimento dos problemas amazônicos, um recado indireto aos militares que questionaram a preparação do Sínodo.

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Evento ocorre em outubro

1. O que é o Sínodo?

É o encontro global de bispos no Vaticano para discutir a realidade de índios, ribeirinhos e demais povos da Amazônia, além de políticas de desenvolvimento da região e conflitos de terra.

2. Quando ocorre?

O início simbólico do encontro ocorreu em janeiro; de 6 a 27 de outubro será realizada a fase final no Vaticano.

3. Qual é a polêmica em torno do encontro?

O Planalto demonstra desconfiança em relação reunião – o temor é de que o Sínodo não se limite a questões religiosas e se torna palco de críticas ao governo.

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Entrevista - Justino Sarmento Rezende: 'Bolsonaro tem visão colonial dos indígenas'

Felipe Frazão

31/08/2019

 

 

Justino Sarmento Rezende, padre e originário do povo tukuya

Originário do povo tuyuka, o padre Justino Sarmento Rezende, de 58 anos, disse que o presidente Jair Bolsonaro tem uma “visão colonial” sobre os índios e criticou possível “aval” para exploração em terras indígenas. Padre Justino, que vive em São Gabriel da Cachoeira (AM), foi o único indígena a colaborar na elaboração do documento de trabalho do Sínodo da Amazônia.

O presidente Jair Bolsonaro diz que não vai demarcar mais terras indígenas. Como avalia?

Discursos são discursos. Tem a legislação que ampara (a demarcação). Não dá para afirmar que vai fazer isso. Tem a Constituição, as leis estaduais, os Ministérios Públicos que vão, com as comunidades, questionar e tentar superar esses problemas.

E se o presidente tentar mudar a legislação?

Só se for autoritário. Mas espero que nossos governantes não cheguem a isso. Hoje, todos os indígenas estão informados do que está acontecendo, se articulam, colocam em discussão. As autoridades têm que dialogar com os indígenas para definir suas políticas internas.

O presidente e alguns governadores dizem que os indígenas querem sair da pobreza e produzir, explorar suas terras.

Isso é uma visão muito colonial. A pobreza e a riqueza são vistas de várias maneiras. Para nós, a riqueza são nossos trabalhos cotidianos, ter sua roça, a vida comunitária, a partilha com todos. Alguns indígenas vêm com esses discursos de que estão morrendo em cima das riquezas. Quem delegou para falar em nosso nome? Que fique bem claro que não representam povos indígenas em sua maioria