O globo, n.31389, 16/07/2019. Sociedade, p. 21

 

Animal não é coisa 

Audrey Furlaneto 

16/07/2019

 

 

A cena não é rara. Ana Paula Vasconcellos, advogada do Fórum Nacional de Proteção e Defesa dos Animais, que reúne 130 entidades no país, está numa audiência jurídica e precisa convencer o magistrado de que um animal, vítima de maus tratos, tem sentimento seque, portanto, sofreu. Ela costuma ouvira réplica :“Mas animal não sente, animal é coisa”.

É desta forma, afinal, que a legislação brasileira entende o animal: como um bem móvel, de acordo com o artigo 82 do Código Civil. Mas um projeto de lei aprovadona semana passada pela Comissão do Meio Ambiente do Senado eque deve ser votado no plenário em agosto pretende mudar isso.

Apelidado de “Animal não é coisa”, o texto propõe que os bichos sejam entendidos como seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor, prazer e outros sentimentos. Se aprovada alei, eles passa mater inclusive uma personalidade jurídica, podendo, por exemplo, receber habeas corpus ou outros instrumentos legais úteis para sua proteção.

—É a construção de uma sociedade mais solidária com seus animais. O principal ponto dale ié afastara ideia utilitarista ques e construiu acerca dos animais. Vamos reconhecer, enfim, que o que os difere do ser humano é racionalidade e comunicação verbal. No mais, eles são como nós —defende Ana Paula Vasconcellos.

Entendidos como coisas, os animais não conseguem receber medidas de proteção rápidas na Justiça. O presidente da Comissão Nacional de Proteção e Defesa dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Reynaldo Velloso, cita um caso emblemático recente, o da ursa Marsha. Siberiana, ela ganhou a alcunha de “a ursa mais triste do mundo” por viver no calor tórrido do Piauí e aguardar, após décadas de trabalho em circos, a decisão da Justiças obre sua transferênciapara um santuário em São Paulo. Hoje, Marsha mudou de nome —agora é Rowena — e habita uma área com piscina e gramado num rancho na cidade de Joanópolis.

—Se a ursa tivesse sido considerada um senciente nos tribunais, a transferência, que levou quase um ano, poderia ter saído em dias —diz Velloso.

RITA LEE E A AMIGA URSA

A saga de Rowena foi contada no livro “Amiga Ursa” (Globinho) pela cantora Rita Lee. Defensora de longa data dos bichos, ela comemora o andamento do projeto no Senado:

—Houveu ma época em que a Humanidade escravizava seres humanos e diz iaque não tinham alma e, por isso, eram objetos de uso pessoal. Essa mesma mentalidade tacanha ainda acontece hoje em relação aos maus-tratos que o reino animal vem sofrendo. Todos os bichos têm os mesmos sentimentos que os humanos e cabe a nós dar voz a eles. Abaixo a escravidão animal!

O projeto que vai a votação no Senado começou a ser gestado há pelo menos seis anos, na Câmara, com texto do deputado Ricardo Izar (PP-SP) e teve a participação de 30 comissões regionais de Defesa dos Animais da OAB.

Reynaldo Velloso, da comissão nacional, lembra que a aprovação da lei pode abrir caminho para outros projetos —entre eles, o que aumenta a pena por crime de maus tratos. Atualmente prevista na Lei de Crimes Ambientais (de 1998), a punição vai de três meses a um ano. Um projeto de lei caminha no Sena dopara ampliá lapara o período de uma quatro anos.

Aprovada a mudança de status dos animais perante alei brasileira, será preciso rever, entre outras questões, as formas de comercialização.

— Se eles deixam de ser entendidos como coisas, como podem ser comercializados? — questiona Rogério Rocco, especialista em direito ambiental. —É um conflito a ser resolvido. Aos poucos, vamos equiparar os animais não humanos aos humanos. Eles passarão afazer parte de um regime jurídico que não depende apenas da tipificação criminal de maus tratos, ou seja, eles terão direitos antes do crime.

Outros países já transformaram suas legislações para a tal perspectiva biocêntrica. Na Áustria, desde 1988, os animais não são coisas. Na Holanda, desde 2011; na França, desde 2015, e, em Portugal ,2017.