O Estado de São Paulo, n. 45972, 30/08/2019. Espaço aberto, p. A2

 

O joio e o trigo no agronegócio brasileiro

Marina Silva

João Paulo Capobianco

30/08/2019

 

 

O agronegócio brasileiro enfrentará grandes desafios nos próximos anos. Serão tempos de turbulências causadas pelo chamado “fogo amigo”, ou seja, por seus próprios pares.

Depois do salto propiciado por um ciclo vitorioso de desenvolvimento no campo que permitiu superar seu desenvolvimento tardio, o Brasil deixou a posição de importador de alimentos para se tornar um dos mais dinâmicos produtores e exportadores de produtos da agropecuária do mundo. Nas últimas quatro décadas, a produtividade cresceu a uma taxa anual média de 3,43%, muito superior à americana, de 1,38% ao ano. Nesse período, a produção de grãos saltou de 40,6 milhões para 237,8 milhões de toneladas, contribuindo para garantir o equilíbrio da balança comercial do País.

A façanha que colocou o agronegócio brasileiro na vanguarda da produção mundial se deu, no caso da produção de grãos, em parte pela incorporação das chamadas tecnologias cristalizadas, aquelas que estão nas sementes melhoradas, em equipamentos de precisão e insumos mais eficientes. Entretanto, destacam os maiores especialistas na área, mais importante do que elas foram as tecnologias conhecidas como não cristalizadas (ou não materializadas em produtos de prateleira). Para Eliseu Alves, um dos fundadores e ex-presidente da Embrapa, “o conhecimento sobre sistemas de produção impactou mais a agricultura brasileira do que equipamentos, máquinas e sementes”.

Essa é uma questão central que deve ser considerada quando discutimos o futuro da agropecuária no Brasil. As tecnologias que tratam dos modelos de produção inovadores, como o manejo de pragas, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta e outras técnicas de agricultura de baixo carbono, por exemplo, são produzidas pelas instituições de pesquisa e encontram dificuldades para chegar aos seus destinatários no campo. Principalmente quando as limitações orçamentárias afetam seu desenvolvimento e a extensão rural.

O desafio do setor, que se encontra no limiar de ruptura com os atuais sistemas de produção no campo por causa da pressão da sociedade, está na incorporação dos novos padrões sustentáveis de produção, e não simplesmente no uso de algum insumo milagroso ou máquina ultramoderna. A cada dia se exige maior conhecimento e respeito às condições de produção de nossos espaços naturais – que incluem o solo, o clima, as fontes de água e a biodiversidade – e o melhor aproveitamento da área que já está disponível para a agropecuária pela remoção da cobertura vegetal original. Há milhões de hectares nessa condição que estão subutilizados, enquanto o desmatamento segue em ritmo extremamente acelerado, como é o caso da pecuária extensiva, responsável por cerca de 80% do desmatamento e uma produtividade muito baixa, de apenas uma cabeça animal por hectare.

A boa notícia é que há muitos atores no campo que já incorporaram a dimensão da sustentabilidade e avançam de forma consistente rumo a uma agropecuária de altíssima produção e compatível com a conservação ambiental. Sistemas de rastreamento da produção, responsabilização pela cadeia de custódia, controle biológico de pragas, combate ao desmatamento, recuperação de áreas degradadas, adesão a programas de redução de emissões e, principalmente, investimentos muito bem-sucedidos no aumento da produtividade passaram a caracterizar parte importante da nossa produção.

A má notícia é que a parcela dos produtores que insiste em ficar no passado está super-representada no Congresso Nacional e no próprio governo federal. Projetos de lei, medidas provisórias e pronunciamentos equivocados surgem quase todos os dias, comprometendo a credibilidade de todo o agronegócio e a própria segurança jurídica necessária à produção. No futuro muito próximo, poderão comprometer também o acesso ao mercado internacional, onde os consumidores, cada vez mais exigentes, pressionam seus governos a não compactuarem com a degradação socioambiental.

A solução para esse impasse não está só em Brasília. Está, sobretudo, no próprio setor. Mais do que pronunciamentos de suas lideranças esclarecidas em prol da produção sustentável, é urgente que os produtores rurais que já incorporaram padrões socioambientais avançados adotem metodologias de certificação de alta credibilidade para mostrarem que seus produtos não são oriundos de processos social e ambientalmente predatórios. Os setores de papel e celulose e de biocombustíveis já estão avançando nessa direção. Falta ao conjunto dos produtores rurais responsáveis mostrar à sociedade a diferença entre o joio e o trigo da agropecuária brasileira.

Ao governo cabe, além do papel de indutor da modernização do setor, combater a cultura da impunidade, que funciona como um poderoso vetor de desincentivo à inovação e de descumprimento da legislação ambiental. Programas como o de Agricultura de Baixo Carbono e o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia precisam ser recuperados e fortalecidos. Produtores certificados por suas boas práticas não podem ser sabotados no mercado pela competição com aqueles que praticam dumping socioambiental.

É chegada a hora de o segmento mais moderno e responsável do agronegócio mostrar suas diferenças e estabelecer uma agenda propositiva que envolva governo, academia e ambientalistas, na qual todos ganhem. Um agronegócio econômica, social e ambientalmente sustentável é interesse de todos os brasileiros. Os que se opõem a essa agenda, ainda que discursem a favor do setor, investem contra ele e se configuram como verdadeiros inimigos do desenvolvimento do País.

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O papel do Brasil na catastrofe climática

Vinod Thomas

30/08/2019

 

 

O Brasil e diversos outros países deveriam alarmar-se pelo fato de que as evidências científicas sobre a urgência de reverter o aquecimento do planeta estão em desacordo com as realidades em cada região. As emissões de dióxido de carbono (CO2), a principal fonte do aquecimento global, vêm aumentando nos principais países emissores: China, Estados Unidos e Índia. Para coroar essa tendência inquietante, o Brasil, sob o novo governo, depara-se com um aumento dos incêndios na Amazônia. Por estar na linha de frente dos riscos naturais, o Brasil deve reverter a tendência do desmatamento em prol da saúde e do bem-estar de sua população, assim como dos países vizinhos.

A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, tal como a de Donald Trump nos Estados Unidos, adotou a falsa premissa de que a promoção de uma ampla “desregulamentação” do meio ambiente impulsionaria o crescimento econômico. A evidência clara, contudo, é que o esgotamento do capital natural, como as florestas no Brasil, só prejudicou o crescimento no longo prazo, especialmente para a população de baixa renda. Nos últimos 50 anos não houve nenhuma retomada do crescimento no País devida à exploração madeireira ilegal e aos incêndios florestais. De fato, observou-se o inverso, especialmente quando os períodos de menor desmatamento coincidiram com um crescimento relativamente forte, em particular na agricultura.

O sensoriamento remoto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicou um aumento do desmatamento desde a posse do novo governo, em janeiro. Da mesma forma, o número de incêndios florestais de janeiro a agosto deste ano é o maior desde 2011, com um aumento de 82% comparado ao número de 2018. As temperaturas locais estão subindo rapidamente acima das tendências globais, produzindo estações mais secas no sul da Amazônia, além de secas generalizadas que favorecem a propagação de incêndios. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais adverte sobre um ponto de inflexão acima do qual o ecossistema da floresta tropical poderá entrar em colapso.

No mundo inteiro, as emissões de carbono levaram a concentração de CO2 atmosférico atingir 415 partes por milhão (ppm) em maio, pressionando o aumento das temperaturas globais. No ritmo atual das emissões, o limite catastrófico de 450 ppm poderá ser ultrapassado em menos de 15 anos. O Brasil, como os Estados Unidos, vem enfrentando extremos do clima, com temperaturas mais altas intensificando secas, tempestades e inundações juntamente com os sinais de elevação do nível do mar.

Diante desse cenário, é vital que o Brasil invista fortemente em adaptação, antecipando ajustes da economia às mudanças causadas pelo aquecimento global. Japão, Holanda e Cingapura são líderes na construção de defesas contra a elevação do nível do mar. É certo que a renda per capita dessas nações é 4,5 vezes maior que a do Brasil, mas, infelizmente, a mudança climática não leva em conta as diferenças de renda entre os países. Em todo caso, as nações com renda média e baixa pagam um preço mais elevado pelas consequências traduzidas por mortes e destruição.

Visto sob a perspectiva dessa realidade, o Brasil não tem atuado de modo suficiente para reforçar suas defesas contra as mudanças do clima. A prioridade das despesas com gestão dos desastres naturais deve aumentar de modo significativo, talvez multiplicar. Uma das principais ameaças que o Brasil enfrentará é o provável impacto na produção agrícola causado pela mudança nos padrões pluviométricos no cinturão de grãos do Centro-Oeste do País. O desmatamento em larga escala na Amazônia certamente afetará o clima em proporções continentais. É urgente ampliar a resiliência da agricultura, da pesca e dos sistemas de saúde e energia.

No entanto, a adaptação sem mitigação para descarbonizar as economias não acompanhará o ritmo das mudanças climáticas descontroladas. Todos os países, mas especialmente os maiores emissores – China, Estados Unidos e Índia – precisam substituir os combustíveis fósseis por fontes de energia renováveis. As notícias boas são de que a energia solar fotovoltaica e a energia eólica, ambas não emissoras de carbono, se tornaram as principais opções em todo o mundo. O custo médio dessas fontes de energia renovável se situa agora na faixa de custo dos combustíveis fósseis.

Mesmo assim, os combustíveis fósseis correspondem a mais de dois terços da necessidade global de energia. Uma razão é ser ainda baixo o uso da energia renovável no transporte, nas residências e nos processos industriais. As políticas destinadas à promoção das energias renováveis e da eficiência energética na indústria e nos edifícios são esparsas. Além disso, o CO2 relacionado à energia também vem aumentando por causa do maior consumo de combustíveis fósseis, incentivado por subsídios governamentais. Em termos globais, esses subsídios em 2018 totalizaram cerca de US$ 400 bilhões.

Os riscos de catástrofes maiores e mais frequentes causadas pelos desequilíbrios do clima nos impõem tomar medidas imediatas. Nosso prazo para agir são os próximos anos, na vigência dos atuais governos. As mudanças no Brasil poderão ser ainda mais dramáticas pela possibilidade de a Amazônia, sem controle do desmatamento, deixar de ser um reservatório de carbono fixado na floresta para ser uma grande fonte emissora, afetando a saúde, o bem-estar e a economia dos brasileiros e seus vizinhos. China, Estados Unidos e Índia devem promover uma mudança radical e substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis. E o Brasil, por compromisso com seu próprio futuro, deve reverter a destruição da Floresta Amazônica.