Valor econômico, v.19, n.4706, 12/03/2019. Política, p. A8

 

Senado desarquiva PEC antiaborto para evitar decisão do STF

Vandson Lima 

12/03/2019

 

 

A possibilidade de se colocar na Constituição brasileira a "inviolabilidade do direito à vida desde a concepção" - ou seja, a proibição expressa do aborto - voltou à discussão no Senado. A Casa desarquivou a Proposta de Emenda (PEC) 29/2015. Aproveitando-se do viés conservador da maioria dos atuais senadores, a ala antiaborto da Casa, capitaneada por Eduardo Girão (Pode-CE) tem pressa: quer limitar na Carta Maior as possibilidades de interrupção de gravidez antes que o Supremo Tribunal Federal (STF) avance sobre o assunto e, eventualmente, amplie as hipóteses hoje permitidas.

O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, marcou para 22 de maio o julgamento de ação que discute a possibilidade de aborto no caso de grávidas infectadas com o vírus zika. O diagnóstico, durante a gestação, está associado a casos de microcefalia. Além disso, há uma ação movida pelo Psol que pede a liberação do procedimento até a 12ª semana de gestação. A relatora é a ministra Rosa Weber, mas ainda não há data para o julgamento.

"Não pretendemos restringir todo tipo de aborto, mas jamais vamos permitir aborto em caso de zika vírus", afirma a senadora Selma Arruda (PSL-MT). Ex-juíza, Selma ficou conhecida como "Sergio Moro de saias" e será a relatora da PEC na CCJ. Ela espera que a matéria seja votada rapidamente. "É possível sim votar a PEC antes que o caso da zika seja apreciado pelo Supremo", assegura.

Líder destacado dos movimentos antiaborto no país nos últimos anos, o senador Eduardo Girão também coloca o Supremo na mira da proposta. "O objetivo com a PEC é se resguardar na Constituição e evitar o ativismo judicial que teima em acontecer, com profundo desrespeito dos ministros do Supremo aos congressistas", afirma. O senador foi o responsável por pedir o desarquivamento da matéria, cujo autor original é o pastor evangélico e ex-senador Magno Malta (PR-ES).

Para Girão, a "PEC da Vida", como ele chama a proposta, já está em estágio de maturidade e poderá tramitar rapidamente. Sobre o avanço do tema no Supremo, ele afirma que, como o tema estará em debate no Congresso, a Corte deveria aguardar a decisão legislativa. Ele se diz terminantemente contra a liberação do aborto em casos de zika. "Muitos trabalhos desenvolvidos no Nordeste mostram que a reação ao tratamento é a melhor possível. Não se pode desprezar uma vida. Se a gente aceita para esses casos, daqui a pouco vão aceitar aborto para síndrome de Down", diz. "Vai virar quase uma eugenia. Nos países que legalizaram aborto, você já não vê crianças com Down como se via anos atrás", afirma, sem citar fontes que confirmem a avaliação.

O grande temor existente entre os senadores e especialistas contrários à PEC é que, assegurado o direito à vida desde a concepção na Constituição, as hipóteses previstas na legislação em vigor também caiam. Hoje a interrupção da gravidez é permitida em caso de estupro, risco de vida à mãe e anencefalia do feto.

Presidente da CCJ, por onde tramitará a PEC, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) é uma crítica da proposta. "Sinceramente, o projeto é muito ruim. Da forma como está, ele revoga imediatamente o que há sobre aborto no Código Penal. Não sou a favor desse retrocesso." Tebet afirma que Girão assumiu com ela o compromisso de trabalhar com Selma Arruda e ajustar o texto, para que não paire dúvida de que as hipóteses de aborto hoje permitidas permaneçam. "Ajudei a desarquivar porque tive o compromisso do Girão de que o texto será arrumado para colocar que serão mantidas ressalvas previstas no Código Penal." Sem esta mudança, Tebet garante, ela não pautará a matéria. A senadora também vê necessidade de o Congresso abordar o tema para evitar que o Supremo o faça. "Esta é uma matéria do Congresso Nacional, seja descriminalizar ou restringir o aborto. Não vão ser 11 ministros que vão decidir sem ouvir a sociedade. E quem representa a sociedade é o poder com voto, que é o Legislativo".

Em agosto, um ciclo de debates promovido pelo STF sobre o tema causou desentendimento entre a ministra Rosa Weber e Magno Malta, autor da PEC agora desarquivada. Malta se mostrou contrariado em meio a um rol de debatedores amplamente favoráveis à descriminalização do aborto - entre as 50 entidades médicas, religiosas, jurídicas e movimentos sociais ouvidos, somaram 32 os que se manifestaram a favor da descriminalização, 16 contra e 2 que não deixaram seu posicionamento explícito. "O Poder Legislativo faz as leis e essa Casa [o STF] é guardiã das leis. Cada um deve conhecer o seu papel. Nos últimos tempos, temos assistido estarrecidos o ativismo judicial no país", disse Malta. Rosa Weber, até então calada, prontamente interrompeu as apresentações para rebater o senador. "A nossa Constituição diz, com todas as letras, que ADPF [arguição de descumprimento de preceito fundamental] será apreciada pelo STF. Tenho o maior respeito pelo Poder Legislativo, mas não estamos invadindo a competência", afirmou Rosa, sendo aplaudida.

A PEC precisa ser aprovada em dois turnos, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, com apoio de ao menos três quintos de cada uma das Casas - 49 votos no Senado e 308 na Câmara.