O Estado de São Paulo, n. 45962, 20/08/2019. Política, p. A4

 

Cintra troca 'número 2' da Receita para conter crise

Adriana Fernandes

Lorenna Rodrigues

Breno Pires

20/08/2019

 

 

Executivo. Pressionado por Bolsonaro, secretário tira auxiliar do cargo, mas preserva titulares de postos-chave no Rio, numa tentativa de deter pedidos de demissão em massa

Fisco. Marcos Cintra, durante seminário; com demissão, secretário especial da Receita ganha tempo para contornar crise

O secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, exonerou ontem o “número 2” do órgão, João Paulo Ramos Fachada, numa manobra para evitar pedidos de demissão em massa de seus auxiliares. Em troca, ele conseguiu preservar o superintendente da Receita no Rio de Janeiro, Mário Dehon, e o responsável pela fiscalização no Porto de Itaguaí (RJ), José Alex Nóbrega de Oliveira, e ganhou tempo para tentar contornar uma crise que ameaça até mesmo sua permanência no cargo.

O Estado apurou que Fachada resistiu a demitir os dois subalternos no Rio, o que expôs o governo. A opção por rifá-lo foi a saída encontrada para dar uma satisfação ao presidente Jair Bolsonaro e passar a imagem de que tem controle sobre o órgão. A ordem para demissões no Rio havia sido repassada a Cintra ao agora ex-auxiliar atendendo a uma determinação do Palácio do Planalto. O novo subsecretário-geral será José de Assis Ferraz Neto, que atua na área de fiscalização em Pernambuco.

Cintra negou ingerências sobre o órgão e afirmou ao Estado que “nunca mandou mudar nada”. “Sugestão de mudanças, eu recebo 20 por dia, de todos os lados, mas o interesse público prevalece”, disse, acrescentando que considera Oliveira, o delegado de Itaguaí, “um ótimo funcionário”. “Nenhuma razão para mudar.”

A pressão por mudanças na Receita teve como origem o vazamento de investigações realizadas por auditores envolvendo autoridades do Supremo Tribunal Federal (STF) e reclamações do próprio Bolsonaro sobre investidas do órgão contra seus familiares, o que chamou de “devassa”. A acusação é de que auditores do órgão estariam agindo por interesses políticos.

A ameaça de interferência provocou uma crise interna, que ganhou força após a recomendação, por pessoas ligadas a Bolsonaro, da demissão de Oliveira, titular da Delegacia da Aduana de Porto de Itaguaí. A região é alvo da atuação de milicianos no contrabando de armas e outras mercadorias, além de foco de tráfico de drogas. A fiscalização tem sido reforçada no local.

Em mensagem compartilhada entre seus pares no fim de semana, Oliveira apontava a existência de “forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização”. Ameaçado de demissão, ele se reuniu ontem com o superintendente do Rio de Janeiro, Mário Dehon, e após o encontro, disse ao Estado que sua situação estava indefinida. “Não saiu nada no Diário Oficial da União.”

A permanência de Oliveira e de Dehon – que também havia recusado dispensar o delegado –, é considerada essencial pelos subsecretários da Receita Federal para afastar o risco de ingerência política nos trabalhos do órgão. Em reunião ontem, em Brasília, com os subsecretários, Cintra se comprometeu a manter os dois no cargo. Diante da promessa, os subsecretários recuaram de um pedido de demissão coletiva.

Os chefes da Receita, no entanto, consideram que ainda existe o risco de comprometimento de investigações, inclusive, as que envolvem autoridades. Um subsecretário disse, na condição de anonimato, que Cintra tem dado “azo” a interferências externas.

Interferência. A troca do subsecretário-geral não encontrou resistência na cúpula da Receita, pois o substituto é considerado um bom técnico, embora pouco conhecido. Ferraz Neto foi o adjunto do atual subsecretário de Tributação, Luiz Fernando Nunes, quando ele comandava a Superintendência da 4ª. Região – Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Segundo um interlocutor de Ferraz Neto, o convite foi inesperado.

Ao Estado, Cintra elogiou o novo subsecretário, disse que a escolha foi uma “unanimidade”, mas queixou-se do que chamou de “clima de fofoca” na Receita. “A quem interessa? Mudanças organizacionais em uma estrutura de 25 mil pessoas são normais.”

O secretário lembrou que, desde o início do governo, a Receita tem passado por reestruturação após a medida provisória que obrigou o corte de cargos comissionados na Esplanada dos Ministérios. Cintra disse que o foco não é “mudança de pessoas”, mas de estrutura funcional. “Estamos há meses reduzindo delegacias, agências e cortando pela metade as superintendências.”

Autarquia. Ainda não há uma definição do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a possibilidade de a Receita se transformar uma autarquia, como revelou o Estado. A mudança vem no rastro da migração do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central .

Guedes ficou satisfeito com a “solução” do Coaf e quer um modelo parecido para blindar tecnicamente a Receita. Ele aguarda estudos da sua equipe. A eventual transformação do órgão em autarquia, no entanto, sofre resistência entre os auditores fiscais, que veem riscos de impacto nos trabalhos de investigação.

Bolsonaro terá jantar hoje com os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU). Na pauta, além da situação das contas públicas, estão o acesso a dados sigilosos de autoridades públicas federais por parte de auditores. Uma decisão do ministro Bruno Dantas determinou que a Receita passe a relação de servidores que tiveram acesso a dados – o prazo para resposta ainda não se esgotou./ COLABOROU MARIANA DURÃO

Mudanças

“Sugestão de mudanças, eu recebo 20 por dia, de todos os lados, mas o interesse público prevalece.”

“Mudanças organizacionais em uma estrutura de 25 mil pessoas são normais.”

Marcos Cintra

SECRETÁRIO ESPECIAL DA RECEITA FEDERAL

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No 'novo' Coaf , indicado de Moro deixará o cargo

Mateus Vargas

20/08/2019

 

 

O presidente Jair Bolsonaro assinou ontem medida provisória que transfere o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central e rebatiza o órgão, que passa a se chamar Unidade de Inteligência Financeira.

A transferência havia sido anunciada por Bolsonaro no começo do mês como saída para retirar o órgão “do jogo político”. Dias antes, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, havia suspendido o compartilhamento de dados do órgão que foi feito sem autorização judicial. Em entrevista ao Estado, o presidente do Coaf, Roberto Leonel, criticou a decisão. Leonel, que deixará o cargo, havia sido indicado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, a quem o órgão era subordinado no início do governo.

O “novo” Coaf responderá à Diretoria Colegiada do Banco Central, “mas não será, exatamente, parte integrante da estrutura do Banco Central do Brasil e terá autonomia técnica e operacional”, disse o Palácio do Planalto, em nota.

O órgão terá um Conselho Deliberativo, indicado pelo presidente do Banco Central, que ficará responsável por aprovar orientações e diretrizes estratégicas de atuação, além de julgar processos. Diferentemente do Coaf, os membros do conselho não precisam ser servidores públicos. Os cargos poderão ser preenchidos por “cidadãos brasileiros com reputação ilibada e reconhecidos conhecimentos em matéria de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo ou ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa”, segundo a MP.

A presidência do conselho deve ser ocupada pelo atual diretor de Supervisão do Coaf, Ricardo Liáo.