O globo, n.31387, 14/07/2019. País, p. 11

 

Só 5% das audiências de custódia citam abuso 

Renata Mariz 

14/07/2019

 

 

Recorrentes por parte do presidente Jair Bolsonaro, dos filhos políticos dele e de aliados, críticas às audiências de custódia como instrumento usado por presos para forjar violência policial não encontram respaldo nos dados oficiais. Apenas em 5% dos casos o detido relatou ter sofrido maus-tratos ou tortura, e 52,3% dessas denúncias resultaram em abertura de investigação para apurar a conduta dos agentes públicos. Isso significa que quase metade dos relatos não é averiguada. Os números do Conselho

Nacional de Justiça (CNJ), aos quais O GLOBO teve acesso, abrangem de 2015, quando as audiências de custódia foram regulamentadas pelo órgão, até junho de 2019. No total, foram pelo menos 533 mil audiências realizadas no Brasil. O instrumento estabelece que os presos em flagrante sejam apresentados em até 24 horas a um juiz, que decidirá se a detenção é de fato necessária. Para Mauricio Dieter, professor de criminologia da Universidade de São Paulo (USP) e estudioso das audiências de custódia, o fato de quase metade das denúncias não ser investigada tem relação com a falta de treinamento e preparo de juízes e promotores. Ele faz uma analogia da situação da tortura e dos maus-tratos perante os tribunais com o crime de estupro no passado: —Por muito tempo o Judiciário banalizou o estupro, considerando que, se não havia vítima machucada, testemunhas ou outras provas, não era possível ir adiante, até que evoluímos. Com a tortura acontece o mesmo. É preciso uma formação para juízes e MP (Ministério Público).

Ele ressalta que a tortura é praticada, muitas vezes, de forma a não deixar marcas, o que não pode ser ignorado pelas autoridades. Dieter defende a adoção efetiva do Protocolo de Istambul, uma espécie de manual para investigação eficaz de tortura e outros tratamentos degradantes produzido pelas Nações Unidas. Embora ratificado pelo Brasil, o protocolo não é considerado no cotidiano. Apesar de o índice ser baixo proporcionalmente (5% do total), em números absolutos as audiências em que presos relataram agressões, maus-tratos ou tortura chegam a 26 mil no período analisado. O dado é alarmante, aponta Eduardo Nunes de Queiroz, defensor nacional de direitos humanos da Defensoria Pública da União, devido à natureza das violações denunciadas. A tortura é considerado crime contra a humanidade. — Quase sempre o crime é praticado pelo agente público para combater um outro crime de muito menor gravidade, uma vez que as pessoas são presas por furtos de pequeno valor, por drogas em pequena quantidade —afirma Queiroz.

Ele destaca ainda que há uma subnotificação nesses dados. Por um lado, o sistema do CNJ que computa os números é alimentado pelos tribunais, mas o repasse das informações não é obrigatório. Por outro, os próprios presos que sofreram agressões no contexto da detenção nem sempre as denunciam quando estão diante dos juízes, aponta o defensor Queiroz. —Não há um contexto, um ambiente qualificado e de proteção que facilite a colheita desses relatos e das provas—diz ele.

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OAB vai ao STF contra varas coletivas na Justiça

André de Souza 

14/07/2019

 

 

Desde 2007, Alagoas tem uma vara coletiva para julgar o crime organizado. Ela conta com três juízes titulares, que dão decisões em conjunto. O objetivo é garantir sua segurança e preservá-los de eventuais retaliações, uma vez que um magistrado decidindo sozinho é um alvo mais visível e fácil aos criminosos. O modelo, já copiado pelo Ceará em 2018, voltou a ser questionado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A entidade, que já tinha apresentado em 2010 uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a lei estadual alagoana que criou a vara, questionou novamente sua existência em junho deste ano.

O julgamento, quando ocorrer, poderá impactar outros estados. O GLOBO procurou todos os Tribunais de Justiça (TJs), e apenas o do Ceará informou ter uma vara como a de Alagoas. Mas Rio Grande do Sul e Paraíba também estudam criar as suas. Em Alagoas e no Ceará, as decisões são assinadas por todos os juízes, sem menção a discordâncias entre eles. As varas ficam na capital, mas julgam casos de todo o estado, e os magistrados têm direito a reforço na segurança. Em maio de 2012, o STF declarou que a vara de Alagoas poderia existir, mas também entendeu que algumas de suas regras eram inválidas. Os

crimes de homicídio quando conexos com o crime organizado, por exemplo, não poderiam mais ser examinados pela vara, mas sim pelo tribunal do júri. Em 2015, foi aprovada uma nova lei estadual para se adequar à decisão. Ocorre que, em julho de 2012, após o julgamento no STF, entrou em vigor uma lei federal tratando do tema. A norma diz que o juiz de um processo, em caso de risco à sua integridade física, poderá instaurar um colegiado provisório, formado por ele e mais dois magistrados.

O que existe em Alagoas é uma vara permanente, em que as decisões mais importantes, como as sentenças, são tomadas de forma coletiva, enquanto despachos mais simples podem ser individuais. Segundo a ação da OAB, isso contraria alei federal. O conselheiro Márcio Schiefler, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), explica que o modelo deva rasco moa de Alagoas não equivale ao do juiz sem rosto, que foi aplicadona Itália ena Colômbia. Nessa modalidade, a identidade do magistrado, também por questões de segurança, é preservada. Ele vê como positiva a experiência alagoana e entende que alei federal, ao permitir que o juiz procure “ajuda”, tem problemas: — Ao ser incumbido pela leide provocara formação do colegiado, o juiz pode ser visto, por quem não entenda dessa matéria, como alguém que não teve pulso, firmeza para fazer o julgamento.