O globo, n.31385, 12/07/2019. Artigos, p. 03

 

Naturalizar trabalho infantil só pode ser brincadeira

Flávia Oliveira

12/07/2019

 

 

Bastou o presidente da República, num arroubo via internet, naturalizar a própria labuta infantojuvenil para (sob convocação do filho 03, o deputado Eduardo Bolsonaro) as redes sociais multiplicarem-se em exemplos vivos da nobreza do trabalho precoce. A avalanche de exaltações obrigou um conjunto de instituições a se manifestar sobre o despautério. Ministério Público do Trabalho (MPT), Conselho Federal da OAB, Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat) e Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil divulgaram nota conjunta em que alertam sobre os riscos do trabalho infantil, página que a sociedade brasileira parecia ter virado ao promulgar a Constituição de 1988.

Faz três décadas que a Carta fixou em 16 anos a idade mínima para o trabalho, desde que não seja em situação insalubre, perigosa ou no horário noturno. O Artigo 6º, que determina proteção integral à infância, antecedeu a Convenção dos Direitos da Criança da ONU, de 1989. A partir dos 14 anos, adolescentes brasileiros podem ingressar no mercado como aprendizes, modelo regulado por um sistema de cotas jamais inteiramente cumprido pelas empresas.

O Brasil começou a combater a exploração de mão de obra infantil nos anos 1990 e começou a colher resultados nas décadas seguintes. Na faixa etária de 5 a 13 anos, justamente na qual Jair Bolsonaro foi iniciado, as ocorrências diminuíram muito com os esforços para universalização do ensino fundamental. Nessa faixa, em 2016, havia 190 mil brasileirinhos ocupados, segundo a Pnad Contínua do IBGE. Três em cada quatro auxiliavam familiares em atividades produtivas sem receber qualquer remuneração. O dado é o último disponível; está prevista para setembro a divulgação dos resultados conjuntos de 2017 e 2018.

No último 12 de junho, Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, a OIT lançou a campanha “Criança não deve trabalhar, infância é para sonhar”. A entidade estima que hoje, no Brasil, 2,4 milhões de crianças e adolescentes trabalham, tanto fora quanto dentro de casa. O total beira 20,1 milhões, calcula o IBGE, quando se considera o total de pessoas de 5 a 17 anos encarregadas de tarefas domésticas, cuidados com pessoas e produção para consumo próprio. Há, claro, o caso da menina e do menino que, pedagogicamente, arrumam as próprias camas ou secam a louça do jantar. Mas há, sim, crianças submetidas a funções de adultos, cozinhar, lavar e criar irmãos mais novos.

O economista Mauricio Blanco, ex-Ipea e Iets, hoje no Instituto AFortiori, entre Rio e Washington, estuda trabalho infantil desde 2008. Constatou em pesquisas que, nas áreas rurais, a exploração da mão de obra infantil se dá na lavoura e nos afazeres domésticos em condições quase análogas à escravidão. A remuneração, quando há, fica na média de R$ 15 por mês; não chega na maior parte dos casos a 1% da renda familiar. É dado concreto que derruba a ideia de contribuição ao orçamento doméstico. Pesam mais as tradições culturais.

Nas metrópoles, o peso é maior. Blanco estima em 12% o peso do trabalho infantojuvenil na renda doméstica. O dinheiro vem, em boa parte dos casos, de atividades criminosas, como prostituição e tráfico de drogas. Não há nada de romantismo, pedagogia nem nobreza nisso. É cinismo comparar a menina classe média que vende brigadeiros na escola para pagar aulas de tênis com crianças submetidas a jornadas excessivas, arriscadas, insalubres, ora criminosas, que lhes solapam o direito à infância, à educação adequada e ao lazer. Como escreveram MPT e companhia: “é inegável que provoca acidentes e adoecimentos, leva a baixo rendimento e evasão escolar, provoca inversão de papéis, rouba oportunidades”.

Exploração de mão de obra infantil traz graves consequências ao futuro de crianças e adolescentes e, portanto, ao país. É especialmente danoso na era do conhecimento, em que trabalho braçal vale cada vez menos, e boa e demorada formação é o que conta. De quebra, a tolerância com as más práticas pode trazer prejuízos à balança comercial brasileira. O festejado recém-formado acordo entre Mercosul e União Europeia exige compromisso de combate ao trabalho infantil. Daí a barreiras não tarifárias à produção nacional, é um pulo. Naturalizar trabalho infantil só pode ser brincadeira.