O Estado de São Paulo, n. 45943, 01/08/2019. Política, p. A6

 

Supremo deve manter demarcação com Funai

Rafael Moraes Moura

Amanda Pupo

01/08/2019

 

 

Corte pode impor nova derrota ao governo, que transferiu atribuição à Agricultura

Ministro. Barroso concedeu, em junho, liminar suspendendo MP que transferia demarcação para Ministério da Agricultura

O Supremo Tribunal Federal, que retoma suas atividades hoje, deverá manter a demarcação de terras indígenas com a Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça, segundo integrantes da Corte ouvidos reservadamente pela reportagem. A controvérsia é alvo de quatro ações ajuizadas por partidos políticos – PSB, Rede Sustentabilidade, PT e PDT.

A discussão sobre a demarcação de terras indígenas pode marcar a segunda derrota imposta pelo Supremo ao governo de Jair Bolsonaro. A primeira foi em junho deste ano, quando o tribunal decidiu, por unanimidade, colocar limites à extinção de conselhos pelo Palácio do Planalto. Os ministros determinaram naquela ocasião que o governo federal não pode extinguir conselhos que tenham sido criados por lei.

Agora, os integrantes do STF vão decidir se referendam ou não uma liminar concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso. Em junho, Barroso deu uma decisão monocrática (individual) suspendendo trecho de uma nova medida provisória que transferia a demarcação para o Ministério da Agricultura.

O tema já foi alvo de idas e vindas e expõe as tensões na relação do Palácio do Planalto com o Congresso Nacional e o STF. Ao assumir o comando do governo, em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que reestruturava o governo e transferia a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. O texto foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas com alterações – uma delas foi justamente manter essa responsabilidade com a Funai.

Após a derrota parcial no Parlamento, o governo contrariou o Congresso e editou uma nova medida provisória, em uma nova tentativa de deixar com a pasta da Agricultura a demarcação, o que foi suspenso por Barroso. A mudança da transferência da demarcação é um pedido da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), uma das maiores bancadas do Congresso.

“A MP 886/2019 reedita a norma rejeitada pelo Congresso Nacional e o faz na mesma sessão legislativa em que ela vigorou e na qual foi rejeitada, o que configura violação ao teor literal do artigo 62 da Constituição, bem como ao princípio da separação dos poderes”, escreveu Barroso na decisão em junho.

Em manifestação enviada ao STF, a Advocacia-Geral da União (AGU) – que defende os interesses do governo federal – afirmou que a demarcação de terras indígenas no Brasil tem sido feita “sem nenhum planejamento estratégico” e sofrido “pressão” de grupos sociais e políticos, brasileiros ou internacionais. A AGU alega que a insuficiência de recursos humanos e orçamentários da Funai prejudica o andamento do processo de identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas.

Negócio. Na última segunda-feira, o presidente Jair Bolsonaro disse que a demarcação de terras indígenas está “inviabilizando o nosso negócio”. “O Brasil vive de commodities, daqui a pouco o homem do campo vai perder a paciência e vai cuidar da vida dele. Vai vender a terra, aplicar aqui ou lá fora, e cuidar da vida dele. A gente vai viver do quê? O que nós temos aqui além de commodities?”, questionou o presidente.

Na mesma entrevista, Bolsonaro voltou a afirmar que pretende legalizar o garimpo no País, o que inclui a liberação da atividade em terras indígenas. Também questionou o fato de que as terras indígenas demarcadas no Brasil ficam em áreas “riquíssimas” e disse que organizações não governamentais (ONGs) estrangeiras querem “ter para si a soberania da Amazônia”.

No último sábado, 27, Bolsonaro disse que por pensar dessa forma está enviando seu filho Eduardo Bolsonaro para embaixador nos Estados Unidos. “Estou procurando o primeiro mundo para explorar essas áreas em parceria e agregando valor. Por isso, a minha aproximação com os Estados Unidos. Por isso, eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA... quero contato rápido com o presidente americano”, afirmou na ocasião.

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OAB aciona STF para Bolsonaro esclareer morte de militante

Rafael Moraes Moura

Amanda Pupo

Gabriel Wainer

Vinicius Passarelli

01/08/2019

 

 

Felipe Santa Cruz e 12 ex-presidentes do órgão pedem informações sobre desaparecimento de Fernando Santa Cruz

Ordem. Felipe Santa Cruz quer explicações do presidente

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe de Santa Cruz, acionou ontem o Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir explicações do presidente Jair Bolsonaro, que apresentou nesta semana uma versão sobre a morte do desaparecido político Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira – pai de Felipe e integrante do grupo Ação Popular (AP) – que não tem respaldo em informações oficiais. A ação foi subscrita por todos os 12 ex-presidentes vivos da OAB.

Na segunda-feira, Bolsonaro afirmou que Fernando Santa Cruz foi morto por correligionários na década de 1970. A declaração contraria uma lei vigente e uma decisão judicial que reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro no sequestro e desaparecimento do então estudante de direito, em 1974.

Para o presidente da OAB, que tinha dois anos quando o pai foi morto, é “intolerável” que Bolsonaro procure “enxovalhar a honra de quem fora covardemente assassinado pelo aparelho repressivo estatal”. Ele destaca que relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada no governo Dilma Rousseff para esclarecer violações de direitos humanos praticadas de 1946 a 1988, concluiu que seu pai “foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.

Na peça, o presidente da OAB pede explicações para os seguintes pontos: se Bolsonaro confirma a afirmação a veículos de imprensa de que Fernando Santa Cruz foi assassinado por integrantes da Ação Popular, e não por militares. E questiona se o presidente da República efetivamente tem conhecimento das circunstâncias, locais, fatos e nomes das pessoas que causaram o desaparecimento forçado e assassinato do militante; em caso positivo, quais informações detém, como as obteve e como as comprova; se sabe e pode nominar os autores do crime e onde está o corpo; em caso afirmativo, a razão por não ter denunciado ou mandado apurar a conduta criminosa revelada.

Segundo o presidente da OAB, esta não é a primeira vez que Bolsonaro tenta “desqualificar a memória” de seu pai. Em 2011, ainda como deputado federal, Bolsonaro afirmou em palestra na Universidade Federal Fluminense (UFF) que Fernando Santa Cruz teria morrido “bêbado” após pular o carnaval.

“A diferença é que, agora, na condição de presidente da República, ele confessa publicamente saber da forma e da circunstância em que foi cometido um grave crime contra a humanidade, além de ofender a memória da vítima, bem como o direito ao luto e à dignidade de seus familiares”, afirmou.

Decoro. O Palácio do Planalto afirmou que só vai se manifestar quanto tiver conhecimento do teor da ação. Bolsonaro disse que não há quebra de decoro em suas falas sobre a morte de Fernando Santa Cruz. “Quem age dessa maneira perdeu o argumento. A história tem dois lados e não pode valer um lado só.” E afirmou que “não tem verdade nenhuma” nas revelações da Comissão da Verdade. “Alguém acredita que o PT está preocupado com a verdade? Quando falaram em ‘comissão da verdade’ todo mundo riu do nome.”

Conduta. Especialistas em Direito consultados pelo Estado consideram que as declarações, isoladas, não configuram crime de responsabilidade, mas o acúmulo de condutas que atentam contra a Constituição, sim.

“Para caracterizar o crime de responsabilidade não é suficiente um comportamento, uma conduta, digamos, ocasional do presidente. Pelo conjunto da obra é que dá para caracterizar essa incapacidade de conviver com a Constituição”, disse o exministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto.

“Uma frase isolada não dá para tipificar, mas o somatório, sim. O problema é que ele está somando essas manifestações ao longo dos dias, semanas e meses”, disse o professor de Direito do Mackenzie Alberto Rollo.

‘Incontinência verbal’

O ex-presidente FHC disse que Bolsonaro dá “vazão a rompantes autoritários” e tem “incontinência verbal” ao citar a declaração sobre Fernando Santa Cruz.