Valor econômico, v.19, n.4708, 14/03/2019. Opinião, p. A18

 

Muito barulho por nada? O fundo da Lava-Jato 

Ligia Costa 

Leopoldo Pagotto 

14/03/2019

 

 

A mais recente polêmica envolvendo a Operação Lava-Jato é a destinação de parte da indenização paga pela Petrobras ao governo americano para um fundo, o fundo da Lava-Jato, a ser gerido por uma fundação de direito privado a ser criada. Alguns dizem que estes recursos deveriam ser destinados para o pagamento das vítimas da Petrobras - os acionistas propriamente ditos. Outros entendem que esses recursos deveriam ser destinados ao Tesouro. A verdade pode estar com todos ou com ninguém. De fato, uma análise detida dos fatos envolvendo as razões da criação deste fundo demonstra que a verdade não está com ninguém. Vejamos.

A primeira questão que se deve inquirir é sobre a origem desses valores. Como se sabe, a Petrobras possui ações emitidas e negociadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque, beneficiando-se do acesso ao mercado de capitais dos Estados Unidos. Com este benefício, surge uma série de deveres regulatórios, dentre os quais se encontram 1- a legislação protetiva dos investidores do mercado de capitais e 2- o Foreign Corrupt Practice Act (FCPA), mais antiga legislação de combate à corrupção, cujos efeitos são extraterritoriais.

Diante das revelações da Lava-Jato, ações foram propostas por investidores privados - os acionistas das Petrobras - nos Estados Unidos, visando obter compensação pelos danos causados (por exemplo, falhas na governança corporativa, fraudes da gestão etc). Estas questões foram resolvidas por acordos no âmbito privado, nos quais a Petrobras pagou vultosa indenização a esses investidores privados.

Além disso, as "autoridades americanas", isto é o Departamento de Justiça americano (DoJ) e Securities Exchange Comission (SEC), iniciaram procedimentos para apurar a responsabilidade da Petrobras por violação ao FCPA. Desde sua criação, um dos principais objetivos do FCPA é mostrar que, naquele país, não se pode violar a legislação impunemente. O caráter dissuasório do FCPA é evidente. Em outras palavras, em caso de violação ao FCPA uma multa será apurada e recebida pelo governo americano - sim pelo governo americano, exclusivamente. A grosso modo, todo o valor a ser arrecado por violação ao FCPA poderia ser usado para a construção do muro com o México, manutenção de armas nucleares ou subsídios ao sistema de saúde daquele país, conforme o que viesse a ser determinado pelo Congresso.

Há muito se critica a aplicação desta multa em casos envolvendo o FCPA. A maioria das violações por corrupção ocorre nos países subdesenvolvidos, os quais não conseguem sancionar a corrupção, nem recuperar os valores subtraídos. Pior, estes países ficam tachados como corruptos, o que desestimula investimentos no desenvolvimento.

O caso mais paradoxal é o da Nigéria. Este país sofre com corrupção endêmica e é governado por lideranças corruptas que se alternam no poder há décadas. O petróleo, sua principal riqueza, gera recursos que são apropriados pelos políticos. Parte significativa dos casos relativos às violações ao FCPA envolve fatos ocorridos na Nigéria, mas as multas impostas pelo governo americano são pagas e usadas nos Estados Unidos. Em outras palavras, cria-se um círculo vicioso.

O acordo celebrado pelo Ministério Público Federal, Petrobras e as autoridades americanas revertendo parte dos recursos da multa por violação ao FCPA rompe com este paradigma e constitui uma liberalidade do governo americano, que não possui dever algum para com o Brasil. Os americanos poderiam simplesmente ter multado a Petrobras e o seu Congresso decidiria como seria usada a multa. De modo inédito, o acordo se propõe endereçar melhor essa questão do impacto adverso do FCPA sobre os países em desenvolvimento e, como toda solução inédita, está sujeita a crítica e aperfeiçoamento.

Parte da multa paga pela Petrobras ficará com o governo americano, mas a fatia do leão (80% do total) será entregue a esse fundo da Lava Jato. De acordo com o divulgado pelo Ministério Público Federal, o objetivo principal do fundo é pagar indenizações aos acionistas da Petrobras aqui no Brasil e, subsidiariamente, ser usado para a constituição de uma fundação de direito privado, cujo propósito será o fomento de atividades que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção - é inegável o paralelo deste fundo com a Siemens Integrity Initiative, criada em 2008, quando a Siemens foi punida com a então multa recorde por violação ao FCPA.

Observe-se que, em nenhum momento, o acordo interfere sobre as ações privadas ou públicas, individuais ou coletivas, em curso no Brasil. Ao contrário, o fundo constituído até aumenta, em tese, a garantia de que eventuais indenizações serão pagas nas ações judiciais em curso.

O ponto principal, na verdade, tem que dizer respeito à governança destes recursos e não quanto à sua destinação. Como serão geridos? De que forma serão escolhidos os gestores? Quem indicará quais ONGs da sociedade civil podem participar? Estas questões são legítimas e precisam de esclarecimento. Pela natureza semi-pública dos recursos, transparência será imprescindível - seus gestores não poderão ficar andando de veículos de luxo pelas ruas do país, tal como ONGs internacionais são acusadas de agir em países africanos.

Esta natureza semi-pública traz à tona legítimos questionamentos sobre a necessidade ou não de participação do poder legislativo - afinal, um dos papéis primordiais do legislativo é autorizar e fiscalizar gastos públicos. Por outro lado, não se pode ignorar que parcela considerável dos políticos está envolvida nestes escândalos, criando uma situação paradoxal. Outra crítica razoável diz respeito ao modo como as ONGs determinarão a política pública. Quem elegeu estas ONGs? Haverá um chamamento público?

Portanto, o balanço geral é o de que este fundo é mais uma vitória da Operação Lava Jato. Embora haja dúvidas pertinentes sobre a governança dos recursos, todos hão de concordar que o Brasil se beneficiará mais deles do que se a multa fosse paga diretamente ao governo americano para a construção do muro com o México.