O Estado de São Paulo, n. 45986, 13/09/2019. Política, p. A6

 

MP 'não serve a governos', diz decano

Rafael Moraes Moura

13/09/2019

 

 

Celso de Mello defende independência do Ministério Público, enquanto Raquel Dodge pede atenção do Supremo aos sinais contra a democracia

Na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que marcou a despedida da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, fez ontem uma defesa enfática da independência do Ministério Público, afirmando que a instituição “não serve a governos”. Raquel, por sua vez, pediu aos ministros que “permaneçam atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia”.

No Supremo, a fala do decano foi interpretada como um recado ao presidente Jair Bolsonaro, que indicou o subprocurador-geral da República Augusto Aras para suceder a Raquel no comando do Ministério Público Federal. Aras não disputou a lista tríplice e sua escolha quebrou uma tradição de 16 anos. Ele foi visto como o candidato que melhor soube ler os sinais de Bolsonaro quanto aos requisitos para a indicação para o cargo.

Bolsonaro já disse que quer um novo PGR que não seja “radical na questão ambiental”, nem que aja como um “xiita”, nem “atrapalhe” projetos de infraestrutura, sendo “alinhado” com o Brasil. O nome de Aras ainda depende de aprovação no Senado.

“O Ministério Público não serve a governos, não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades podem ostentar na hierarquia da República”, discursou Celso de Mello na abertura da sessão plenária.

Para ele, o MP “também não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer seja”. “Ou instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, quaisquer que elas sejam, sob pena de o Ministério Público se mostrar infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é, segundo o que diz a própria Constituição Federal, a de defender a plenitude do regime democrático.”

Segundo apurou o Estado, o decano reagiu nesta semana com indignação ao comentário do vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, de que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”.

‘Regime de leis’. Em sua despedida, Raquel Dodge disse que no Brasil e no mundo “surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito de direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio para as futuras gerações”.

“Nesse cenário é grave a responsabilidade do Ministério Público, mas é singularmente importante a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público, para acionar o sistema de freios e contrapesos, para manter leis válidas perante a Constituição, para proteger o direito e segurança para todos, para defender minorias”, afirmou.

A procuradora-geral da República até teve apoio de ministros do Supremo e do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para ser reconduzida ao cargo por mais dois anos, mas acabou preterida por Bolsonaro.

Em discurso protocolar, o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, elogiou Raquel e disse que “sem um Ministério Público forte e independente na defesa dos direitos e das liberdades das pessoas e no combate à corrupção, os valores democráticos e republicanos propugnados na Constituição de 1988 estariam permanentemente ameaçados”.

As declarações mais contundentes ficaram a cargo mesmo do decano. “Regimes autocráticos, governantes ímprobos (desonestos), cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à própria desconstrução da ordem democrática temem um Ministério Público independente”, frisou Celso de Mello, que já atuou no Ministério Público de São Paulo antes de ser indicado pelo então presidente José Sarney para assumir uma das cadeiras do Supremo, em 1989.

Desde que Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto, o decano se notabilizou por ser um dos principais defensores na Corte dos direitos das minorias e da liberdade de expressão.

‘Subordinação’

“O Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos, não se subordina a partidos, não se curva à onipotência do poder.”

Celso de Mello

MINISTRO DO STF

Liberdade

Preso desde segunda-feira, o ex-deputado Indio da Costa obteve habeas corpus do TRF-4 para deixar a prisão.

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Aras diz que frisou independência do Ministério Público a Bolsonaro

Daniel Weterman

13/09/2019

 

 

Indicado à PGR afirma ter dito a presidente que Planalto não pode ‘mandar e desmandar’ no trabalho do MP

Visita. Simone Tebet recebeu Augusto Aras no Senado

Indicado para comandar a Procuradoria-Geral da República (PGR), o subprocurador Augusto Aras afirmou ontem ter dito ao presidente Jair Bolsonaro que ele não pode “mandar, desmandar” nem mudar o que for feito pelo Ministério Público porque o ocupante do cargo tem garantias constitucionais.

A afirmação foi feita durante visita de Aras ao gabinete do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que é contrário à sua indicação. “Tive o primeiro contato com o presidente através de um amigo de muitos anos e disse ao presidente exatamente isso: ‘Presidente, o senhor não pode errar (...) porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem as garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar (...). Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito”, disse Aras ao senador. A conversa foi captado por cinegrafista da TV Globo.

Antes de anunciar a escolha de Aras, Bolsonaro defendeu o alinhamento do procurador-geral com algumas ideias. Em entrevista ao Estado, no mês passado, o presidente afirmou que não pretendia indicar para o cargo um “xiita” da questão ambiental nem das minorias.

Desde o início da semana, Aras está em busca de votos no Senado. Para ser efetivado no cargo, ele será sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça e precisa do apoio de pelo menos 41 dos 81 senadores. A sabatina está marcada para o próximo dia 25. Ainda ontem, o subprocurador defendeu um Ministério Público “moderno”, em sintonia com as necessidades de um Brasil novo, “que exige não somente combate à corrupção, mas também o destravamento da economia”.

Alessandro Vieira disse que Aras demonstrou interesse em “domar a independência” dos colegas que atuam na primeira instância. “Ele tem uma visão de que o MP tem um papel importante na indução de políticas econômicas. Eu entendo que não. O MP não é parceiro do governo. É, mais do que tudo, um fiscal das políticas desenvolvidas”, afirmou o senador.

A indicação do subprocurador tem como relator o senador Eduardo Braga (MDB-AM), que é investigado na Lava Jato. Braga afirmou que seu parecer será favorável à indicação. “Minha percepção (em relação ao subprocurador) é no sentido de que teremos avanços”, disse ele. Questionado se não se sente constrangido em ser relator, quando pode depender de uma avaliação da Procuradoria-Geral para ser ou não denunciado, Braga respondeu: “Não tenho pendência na Justiça. Sequer há uma acusação formal.”

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Independência é princípio básico

Carlos Ari Sundfeld

13/09/2019

 

 

O Ministério Público Federal está sob ameaça política? Pensar nisso, e ficar atento, tornou-se bem importante nos últimos meses. É desastroso para a democracia, para os interesses gerais e para a luta contra a corrupção que procuradores sejam intimidados ou cooptados pelo poder político, pelo poder econômico ou pelo crime organizado.

Independência institucional é princípio básico. Precisamos dessa independência inclusive na luta contra os monstros de nosso passado. Há certamente exagero na visão corporativa de que, na escolha do procurador-geral da República, tanto o presidente da República como o Senado Federal teriam de ficar vinculados a uma lista tríplice feita à margem da lei por uma associação de classe.

É correto que os poderes legítimos escolham o novo procurador-geral seguindo a lei, sem serem constrangidos pelas preferências da corporação de procuradores. Além disso, não há mal em que procuradores sejam muito fiscalizados e criticados por seus erros e abusos.

Raquel Dodge, que agora se despede, teve momentos melhores e piores – e é necessário discuti-los. Ninguém é infalível ou pode estar acima da lei. Mas há sim razões para receio.

Autoridades políticas relevantes, a começar do presidente da República, flertam com o autoritarismo e sugerem em voz alta que querem submissão, nada menos. Diante disso, ao menos uma manifestação clara precisava vir do Supremo Tribunal Federal.

Foi importante que, ontem, o alerta viesse na voz do decano Celso de Mello, que nos momentos-chave tem simbolizado o consenso de todo o mundo jurídico em torno de princípios inegociáveis. A advertência contra as tentações de “onipotência” foi necessária e oportuna. Esse discurso tem de ficar ecoando sobre nossas autoridades afoitas. Não só as do Executivo e do Legislativo, também do Judiciário e do próprio ministério público.