O globo, n.31384, 11/07/2019. País, p. 04

 

A cota religiosa 

Jussara Soares 

Gustavo Maia 

Bruno Gòes

11/07/2019

 

 

Em mais um aceno à bancada evangélica, o presidente Jair Bolsonaro se comprometeu ontem a entregar uma das duas vagas que poderá indicar para o Supremo Tribunal Federal (STF) a um ministro “terrivelmente evangélico”. A promessa foi feita à Frente Parlamentar Evangélica em um culto na Câmara de Deputados, antes da retomada dos debates que culminaram na aprovação em primeiro turno da reforma da Previdência.

— Um deles será terrivelmente evangélico — declarou, sendo ovacionado.

A primeira vaga será aberta em 1º de novembro de 2020, quando o decano Celso de Mello completar 75 anos de idade. A outra só ficará disponível em julho de 2021, quando será a vez de Marco Aurélio de Mello deixar o cargo. Apesar de distante, a fala de Bolsonaro já abriu uma corrida com especulações entre os que preenchem o principal pré-requisito para o posto.

“SOMOS CRISTÃOS”

No Planalto, atualmente, a torcida é para que o chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), André Luiz Mendonça, fique com o posto. Pastor da Igreja Presbiteriana, em Brasília, o ministro tem 46 anos (a idade mínima é de 35) e tem sido elogiado por sua atuação considerada técnica. Outra vantagem, segundo um aliado do presidente, é que Mendonça, apesar de evangélico, não tem a “bênção” de um líder religioso específico. Deste modo, criaria menos resistência na Corte.

Mendonça conta ainda com o apoio do ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, que também acumula o comando da Subchefia para Assuntos Jurídicos e é considerado um dos mais influentes conselheiros de Bolsonaro.

—Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico? O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar a nossa querida Damares (Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), nós somos terrivelmente cristãos — declarou Bolsonaro ontem.

“COMPROMISSO” COM MORO

Não é a primeira vez que Bolsonaro diz que vai escolher um evangélico para uma vaga no Supremo. No fim de maio, durante um encontro das assembleias de Deus, em Goiânia, o presidente criticou a possibilidade de o STF enquadrar a homofobia como crime de racismo e sugeriu que é o momento de o país ter um ministro da Corte declaradamente evangélico.

Outros dois nomes surgem como alternativas para o cargo, embora não encontrem respaldo entre os principais assessores e aliados do presidente. Um deles é o juiz federal Marcelo Bretas, da Operação Lava-Jato, no Rio, e frequentador da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul. Ele é próximo ao governador do Rio, Wilson Witzel, e do filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Bretas fez questão de prestigiar Bolsonaro em sua posse. Ele tem se movimentado com declarações em defesas de pauta do governo e de Bolsonaro e costuma fazer citações religiosas nas redes sociais. O outro cotado é o juiz federal William Douglas, escritor de livros cristãos, coach motivacional e pregador em diversas denominações evangélicas.

Bolsonaro também chegou a dizer, em uma entrevista, que tinha feito um “compromisso” com o ex-juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça, para indicá-lo à Corte. Entretanto, as novas declarações sobre a indicação de um evangélico para o STF deixam dúvidas se o cargo será de fato entregue a Moro.

REAPROXIMAÇÃO

O posicionamento enfático de Bolsonaro vem num período marcado por uma reaproximação do presidente com o eleitorado evangélico —abancada religiosa no Congresso vinha manifestando incômodo com o início do governo. Em junho, Bolsonaro se tornou o primeiro presidente da República a participar da Marcha para Jesus, em São Paulo.

Divulgada no último dia 8, pesquisa Datafolha mostra que, no recorte por religião, a aprovação do governo é maior entre os evangélicos (41% deles o consideram bom ou ótimo), seguidos pelos espíritas kardecistas (36%) e pelos católicos (30%). Entre os adeptos do candomblé e outras religiões de matriz africana, a aprovação é de 24% e are provação é a maior entre os grupos religiosos: 47% deles consideram o governo ruim ou péssimo. Entre os evangélicos, aparcela de insatisfação é de 24%, a menor entre todas as religiões.

Bolsonaro chegou ontem à Câmara por volta das 8h30m. Ao longo da cerimônia, ele sentou-se entre o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira, bispo licenciado da Igreja Universal, e o deputado Silas Câmara, presidente da Frente Parlamentar Evangélica.

—Nós vivemos um momento de glória e alegria nesse momento, porque está aqui entre nós o escolhido —disse o deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM-RS), ministro licenciado da Casa Civil.

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Cada dia mais liberal, STF é entrave à pauta conservadora do governo 

11/07/2019

 

 

Com uma pauta de costumes cada vez mais ameaçadora para um governo assumidamente conservador, o Supremo Tribunal Federal (STF) virou foco de preocupação para Jair Bolsonaro. Pela segunda vez, o presidente anunciou que escolherá um evangélico para o tribunal. A intenção é mudar a formação de uma Corte cada dia mais liberal nos costumes.

Só no primeiro semestre, o plenário tomou duas decisões em favor de gays e transexuais —um grupo que está longe de ser a prioridade do governo. Foi dado a transexuais e transgêneros o direito de alterar o nome social e o gênero no registro civil, mesmo sem terem sido submetidos a cirurgia de mudança de sexo. Depois, os ministros criminalizaram a homofobia e a transfobia.

Está marcado para novembro outro julgamento que desagrada ao governo: a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Aliados de Bolsonaro e parlamentares conservadores preferem que o assunto seja tratado pelo Congresso, onde as chances de aprovação da proposta são menores. No STF, a tendência é liberar o porte para usuários.

MAIORIA É DE CATÓLICOS

Nenhum dos 11 ministros do STF é evangélico, mas a maioria tem religião. Luís Roberto Barroso e Luiz Fux são judeus. Celso de Mello e Rosa Weber evitam o assunto. Os outros sete são declaradamente católicos. Ainda assim, não se ouve dos ministros votos com viés religioso.

—Religião e fé dizem respeito ao domínio privado, e não público. Neutro há de ser o Estado —disse Rosa Weber no julgamento sobre ensino religioso em escolas públicas, em 2017.

Na história recente do STF, o ministro Menezes Direito, morto em 2009, foi quem mais teve a imagem atrelada à religião. Ele era da Opus Dei, segmento rígido da Igreja Católica. Em 2008, votou alinhado às ideias católicas sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Ele admitia a realização dos estudos, desde que embriões viáveis não fossem sacrificados em nome da ciência.

Para Menezes Direito, o embrião era considerado vida humana e, portanto, teria direito constitucional à proteção. O ministro ressaltou que seus argumentos eram jurídicos.

—Trata-se de decidir sob o ângulo jurídico, o que não afasta a busca da perspectiva interdisciplinar que o assunto requer —afirmou.

Outro ministro reconhecido pela religiosidade era o também católico Neri da Silveira, aposentado em 2002. Ele foi sorteado relator de um recurso da cantora mexicana Gloria Trevi, presa em 2000 sob a acusação de rapto e corrupção de menores.

O caso virou escândalo pelos detalhes sórdidos dos crimes sexuais imputados à artista, que acabou extraditada para o México em 2002. Ela engravidou na carceragem da PF de Brasília e disse que o filho era fruto de relações sexuais mantidas com um policial. Depois, ficou comprovado que o pai era seu advogado. A ré contou sua história em depoimento a Neri da Silveira. Ao ouvi-la mencionar sexo anal, o ministro se recusou a repetir o termo em voz alta. Trocou por “sexo anormal”.

Bolsonaro ainda não escolheu o nome do jurista evangélico que poderia ocupar o STF. Enquanto isso, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra Filho, também da Opus Dei, está em campanha aberta para o cargo.

No governo Temer, ele já sonhava com uma cadeira no STF —mas tinha poucas chances, justamente por suas declarações conservadoras nos costumes. Aos olhos do novo governo, essa característica é qualidade.