O globo, n.31532, 06/12/2019. País, p. 06

 

Prisão após 2ª instância é 'perfeitamente possível'

Gustavo Schmitt

06/12/2019

 

 

Há pouco mais de dez anos, quando houve a primeira decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contrária à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, o relator do caso, o então ministro Eros Roberto Grau, foi enfático ao dizer que era proibida a execução da pena antes de esgotados todos os recursos. Hoje, aposentado, Grau diz que mudou seu entendimento.

—Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia — cantarola, bem-humorado, o ex-ministro, citando o refrão da música de Lulu Santos.

A possibilidade de prisão em segunda instância foi derrubada pelo STF no mês passado, mas voltou à pauta do Congresso, onde é discutida em diferentes projetos. Eros Grau, que prefere ser chamado de “professor”, agora afirma que a prisão após condenação em segunda instância é “perfeitamente possível”, desde que a mudança seja feita por lei ordinária nos códigos de Processo Civil e Penal.

O debate sobre o tema suscita dois discursos: de um lado, quem defende a prisão imediata, após decisão de um tribunal colegiado, diz que tal prática reforça o combate à impunidade e que nas cortes superiores não se analisa provas e fatos, somente questões processuais. Do outro, os que defendem o trânsito em julgado argumentam que o princípio da presunção de inocência, previsto na Constituição, impede a prisão antes que todos os recursos sejam esgotados.

Por que o senhor mudou seu entendimento?

No tempo em que eu fui relator daquele processo em Brasília, o que se discutia era o que estava nos autos. Até porque os juízes não vão além do que está nos autos. E naquele momento o que se decidiu, nos termos do que diz o artigo 5º da Constituição (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória), é que só depois de transitado em julgado a prisão seria possível. O que aconteceu é que recentemente eu fiz uma pesquisa e encontrei os anais de uma sessão da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado de 2011, quando o Cesar Peluso era o presidente do STF e fez uma exposição na Câmara. A audiência debatia a PEC 15/2011, que alterava os artigos 102 e 105 da Constituição para transformar os recursos extraordinário e especial em ações rescisórias. Na ocasião, o Peluso fez considerações no sentido de que seria preciso alterar o Código de Processo Civil, estabelecendo que a partir daí a decisão pode passar em julgado em segunda instância (sem desobedecer ao artigo 5º da Constituição). Isso é perfeitamente possível.

Mas não atingiria uma cláusula pétrea da Constituição ?

Não é cláusula pétrea porque a Constituição nada dispõe sobre isso e sobre efeitos dos recursos especiais (feitos ao Superior Tribunal de Justiça) e extraordinários (que réus podem fazer junto ao STF). Não precisa mexer na Constituição. Basta que uma lei ordinária estabeleça que a matéria a ser examinada pelo STJ e pelo STF não envolve apreciação de matéria de fato (discussão do mérito do processo, como análise de provas e se o réu cometeu ou não crime). Portanto, a prisão passa a ser cumprida a partir dessa decisão (da segunda instância).

Entre muitos juristas é praticamente unanimidade que o artigo 5º da Constituição veta essa interpretação.

A Constituição não estabelece nada no sentido de restringir isso. O que o artigo 5º diz é que passa em julgado quando encerrado o processo de julgamento de matéria de fato e de direito (questões técnicas processuais, como nulidades, que não têm relação com a prova e o mérito). A partir daí, eventualmente, a parte poderá recorrer ao STJ e ao Supremo, mas para examinar a questão de direito, mas não para ganhar tempo. Então, isso realmente é extremamente importante.

Essa alteração não demandaria aprovação no Congresso por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC)?

Basta mudar o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal que passa a ser plenamente constitucional. Convém alterar os dois códigos. E o Poder Legislativo pode inovar e fazêlo nesse sentido, prudentemente. A decisão passa em julgado em que termo? Porque não há mais matéria de fato a ser examinada, só questões de direito a ser examinadas pelo STJ e STF. É uma coisa brilhante.

Não é curioso que o senhor mude de posição após ter defendido de forma tão veemente um entendimento oposto por tantos anos?

O mundo se altera. Cada vez que se propõe uma questão é necessário fazer de conta que é a primeira vez que se raciocina sobre a matéria. E examinar a Constituição atentamente. Ser humilde. Nós não sabemos nada. Ninguém sabe nada. Eu cheguei à conclusão de que está muito enganado quem pensa que sabe tudo (risos). É como a canção que diz: “Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia”.