O Estado de São Paulo, n. 45998, 25/09/2019. Política, p. A4

 

Bolsonaro associa crítica ambiental a 'colonialismo'

Beatriz Bulla

Giovana Girardi

Ricardo Leopoldo

Paul Beraldo

25/09/2019

 

 

NA TRIBUNA DAS NAÇÕES UNIDAS / Presidente adota discurso de confronto na abertura da Assembleia-Geral e chama de ‘falácia’ tese de que a Amazônia ‘é patrimônio da humanidade’; fala tem tom ideológico

Discurso. O presidente Jair Bolsonaro fala durante sessão na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)

Em sua estreia na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro fez ontem um discurso no qual classificou como “falácia” a tese de que a Amazônia “é patrimônio da humanidade” e criticou o que chamou de “espírito colonialista” de países que recentemente questionaram o compromisso do País com a preservação ambiental. Durante sua fala de 32 minutos, recheada de referências religiosas, Bolsonaro surpreendeu ao não adotar uma retórica conciliatória. Ele reforçou na tribuna internacional um discurso de tom ideológico ao afirmar que o Brasil esteve “à beira do socialismo” e atacar adversários políticos e países como Cuba e Venezuela.

A Assembleia-Geral da ONU se tornou, na prática, o maior teste de política externa de Bolsonaro. Para observadores das relações exteriores, o discurso do brasileiro, com foco no confronto, rompeu uma tradição da diplomacia brasileira – baseada na moderação e no pragmatismo – e pode causar prejuízos futuros para setores exportadores e a consolidação de acordos de livre-comércio.

“Isso vai afetar muito as perspectivas do agronegócio brasileiro, da exportação do Brasil em geral”, disse o ex-ministro e ex-embaixador nos Estados Unidos Rubens Ricupero.

O conteúdo da fala, contudo, agradou aos políticos alinhados ao presidente. “Foi um discurso histórico que teve como base Deus, pátria e família”, afirmou o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), primeiro-vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e descendente da antiga família real .

Soberania. Ao rebater as críticas envolvendo as queimadas na Amazônia, o presidente brasileiro reiterou a tese de defesa da soberania nacional. Ele fez menção direta à França, país que esteve na linha de frente das críticas ao Brasil na discussão sobre a preservação da floresta e do meio ambiente. Bolsonaro voltou a sustentar a teoria de que as nações que o criticam têm interesse comercial nas riquezas minerais do Brasil.

E, nesse tema, associou a mídia a “mentiras”. “Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista”, disse Bolsonaro ontem, sem citar o presidente francês, Emmanuel Macron.

“É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade, e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo”, afirmou o brasileiro. “Ela (Amazônia) não está sendo devastada nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora. Não deixem de conhecer o Brasil, ele é muito diferente daquele estampado em muitos jornais e televisões”, disse o presidente.

Bolsonaro não fez citações nominais, mas deixou claro que suas críticas eram dirigidas a líderes como Macron e saudou, como aliado, o presidente americano, Donald Trump. “Questionaram aquilo que nos é mais sagrado: a nossa soberania! Um deles, por ocasião do encontro do G-7, ousou sugerir aplicar sanções ao Brasil, sem nem sequer nos ouvir. Agradeço àqueles que não aceitaram levar adiante essa absurda proposta”, afirmou Bolsonaro.

Depois de discursar, o presidente brasileiro se sentou na plateia do plenário da ONU para assistir à apresentação de Donald Trump.

América Latina. Bolsonaro iniciou seu discurso citando que assumiu um país que estava “à beira do socialismo”, fortemente influenciado por Cuba e Venezuela. Em tom irônico, afirmou que “o socialismo está dando certo na Venezuela: todos estão pobres e sem liberdades”. E disse que o Foro de São Paulo – que reúne partidos de esquerda da América Latina – “continua vivo e tem que ser combatido”.

O plenário estava com lotação quase completa durante o discurso do brasileiro. Perante líderes de outros 192 países, o presidente disse que não se pode apagar “nacionalidades” em nome de um “interesse global abstrato”. “Esta não é a Organização do Interesse Global. É a Organização das Nações Unidas.”

Uma das líderes presentes para ouvir o brasileiro foi Angela Merkel, chanceler da Alemanha, que aplaudiu sem entusiasmo quando Bolsonaro encerrou seu discurso. Mais tarde, o presidente brasileiro negou ter sido agressivo e classificou o próprio discurso como “objetivo e contundente”.

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Muito ideológico, discurso amplia 'pontos de atrito'

Eliane Cantanhêde

25/09/2019

 

 

Mais incisivo na forma e no conteúdo, em alguns momentos até mais agressivo do que em discursos anteriores, dentro e fora do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro manteve na sua estreia na abertura da Assembleia-Geral da ONU o foco de sempre: a ideologia – termo, aliás, citado cinco vezes em 20 minutos.

Ao iniciar o discurso, ele disse ao mundo, em tom grave, algo questionável entre políticos, juristas e estudiosos: que o Brasil esteve “à beira do socialismo” com seus antecessores diretos. Esteve mesmo? Nem que o PT quisesse, por exemplo, haveria ambiente para isso.

Além de elogiar Donald Trump, ele atacou Cuba e Venezuela e mirou na Alemanha e na França, jogando fora o compromisso de reduzir a beligerância. Segundo o ex-embaixador em Washington Rubens Barbosa, o presidente “não focou adequadamente as críticas ao meio ambiente e fez o contrário do esperado: ampliou os pontos de atrito no exterior”.

Bolsonaro falou na verdade para seu público interno e para a direita emergente no mundo, atacando várias vezes a mídia e ampliando os “pontos de atrito” também internos. Para ele, “a ideologia invadiu até os nossos lares” e também “se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas”.

De positivo, a forma. Bolsonaro foi bem treinado, estava mais firme, fluente. Destaque-se também o compromisso com a abertura da economia, redução do risco para negócios, desburocratização e desregulamentação. Aliás, só citou um único ministro, Sérgio Moro, da Justiça, “um juiz que é símbolo no meu país”. Nenhuma referência a Paulo Guedes, da Economia, até mais importante no ambiente internacional.

Depois de tantos ataques à mídia, o presidente prometeu paz, democracia, liberdade de expressão e de credo, ignorando, como sempre, a pobreza, a miséria, a desigualdade social, os principais males brasileiros. No geral, foi muito ideológico, pouco propositivo. Exportadores, produtores e diplomatas esperavam muito mais.