Título: A paz sobre a mesa
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 19/10/2012, Mundo, p. 16
Representantes do governo e das Farc abrem oficialmente, na Noruega, as negociações para pôr fim ao conflito de meio século. A partilha de terras será o primeiro tema em discussão
Muita retórica, promessas, algumas divergências sobre o cessar-fogo e o modelo econômico, e um clima amistoso. Essa foi a tônica, ontem, da histórica retomada do processo de paz que tentará pôr fim a 50 anos de conflito colombiano. Os negociadores do governo de Juan Manuel Santos e da maior guerrilha marxista da Colômbia oficializaram o início da mesa de diálogo nas imediações de Oslo (Noruega) e já marcaram uma nova reunião para 15 de novembro. "Reunidos em Oslo, os porta-vozes do governo da Colômbia e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Exército do Povo, Farc-EP, estabelecemos a instalação pública da mesa de negociações encarregada de desenvolver o acordo geral para o fim do conflito e para a construção de uma paz estável e duradoura", afirma o comunicado oficial divulgado em Hurdal, 61km ao norte da capital norueguesa. "Desta forma, começa a segunda fase (das conversações)", acrescenta o texto, lido por Abel García, representante de Cuba que, com a Noruega, atua como fiadora. Uma terceira etapa, ainda sem data marcada ou prazos definidos, implementará mecanismos de verificação de um eventual acordo final de paz.
O tema do desenvolvimento agrário será o primeiro em discussão — principalmente a posse das terras no país. Em um segundo momento, os rebeldes e as autoridades debaterão a participação política dos guerrilheiros, a desmobilização das Farc, o narcotráfico e os direitos das vítimas (veja o quadro). O ex-vice-presidente e negociador colombiano Humberto de la Calle avisou que, caso o diálogo não avance, "o governo não se sentirá refém do processo". Ele voltou a descartar a suspensão das ofensivas contra a guerrilha e admitiu que as Farc têm cumprido "rigorosamente" seus compromissos. "Não haverá o fim das operações militares, a não ser depois do término da negociação com as Farc", declarou.
La Calle se opôs a um debate sobre o fim do capitalismo. "O modelo econômico não é um tema em discussão nesta mesa, nem os investimentos estrangeiros", alertou o advogado de 69 anos. "A mesa se limitará apenas aos temas da agenda. As ideias que as Farc quiserem ventilar lhes correspondem e, uma vez que o conflito acabe, terão que fazê-lo sem armas", comentou. O governo do presidente Santos desconsiderou negociar, neste momento, a participação dos rebeldes na vida política do país. "Uma vez que as Farc deponham as armas, uma vez que se assine o acordo final que encerrar o conflito, fará política como uma organização. Mas isso não é matéria de discussão desta mesa", disse.
Rodrigo Granda, um dos negociadores do grupo marxista, reiterou que a facção pretende tratar do cessar-fogo. "Não somos enamorados das armas. Se mudarem e criarem condições, e há realmente uma nova Colômbia, as armas serão obsoletas", disse, segundo o jornal colombiano El Tiempo. Por sua vez, Iván Márquez, o principal representante dos guerrilheiros, preferiu não polemizar. "O cessar-fogo facilita uma negociação sem sobressaltos, mas o governo tem suas razões para não fazê-lo até o final", comentou. "Estamos pensando na população e na humanidade."
O guerrilheiro insistiu que, sem justiça social, a paz seria uma quimera. "Uma paz que não aborde a solução para os problemas políticos e sociais (...) equivaleria a semear de quimeras o solo da Colômbia", afirmou Márquez. Também advertiu sobre os riscos de se apressar o processo. "A suposta paz expressa que alguns promovem por sua sugestividade volátil (...) só conduziria aos precipícios da frustração."
As Farc anunciaram que a guerrilheira holandesa Tanja Nijmeijer se unirá à mesa, em Havana. O grupo exige a presença nos debates de Simón Trinidad, ex-comandante do Bloco Caribe da guerrilha, que cumpre sentença de 60 anos de prisão nos EUA. "Ele está condenado injustamente por um delito que não é delito. Guardamos a esperança de que se faça tudo o que estiver ao alcance para que Simón Trinidad integre a mesa", disse Márquez.
Otimismo
Carlo Nasi Lignarolo, cientista político da Universidad de Los Andes (em Bogotá), admitiu ao Correio que há motivos para otimismo, não somente pela atmosfera entre o governo e as Farc, mas também pelas condições do diálogo. "Respeitou-se a confidencialidade das conversações e adotou-se uma agenda delimitada e realista. As Farc sofreram duros reveses e não têm perspectiva de crescer. O governo está consciente dos limites de sua estratégia militar. Tudo isso é um bom presságio para os diálogos", garantiu.
O especialista reconhece que o tema agrário é muito difícil, pela história de reformas agrárias fracassadas na Colômbia e pela forte oposição que isso provocaria em proprietários de terra e pecuaristas. "Se as Farc e o governo chegarem a um acordo razoável sobre o assunto, provavelmente se superará um fator histórico que explica, em parte, o surgimento e o crescimento das Farc", observou Lignarolo. Desde o início do conflito, em 1964, cerca de 600 mil pessoas morreram.
Um problema crucial
O assunto é considerado um dos mais urgentes para a solução do conflito, que deixou ao menos 4 milhões de deslocados nas últimas décadas. Manuel Marulanda, o Tirofijo, fundou as Farc em 1964, a partir de um grupo de autodefesa camponês conservador, que travava uma guerra com os liberais. De acordo com um levantamento da Organização das Nações Unidas, as ações das Farc em nada melhoraram a distribuição de terras na Colômbia. Mais de 52% das grandes propriedades se concentram em mãos de apenas 1% da população.
MemóriaHistórico de fracassos
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Já são cinco décadas de embates entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo colombiano. A fundação do grupo guerrilheiro teve início em 11 de abril de 1964, durante ataques do governo (Operação Marquetalia), ordenada pelo então presidente, Guillermo León Valencia, para combater um grupo de autodefesa comunista camponês, que exigia a melhor distribuição de terras.
Este é o quarto processo de paz que a Colômbia tenta implementar nas últimas três décadas. A primeira tentativa ocorreu durante a presidência de Belisario Betancur (1982-1986) e prosseguiu em parte do mandato de seu sucessor, Virgilio Barco, entre 1986 e 1990. As Farc aceitaram uma trégua e começaram as negociações, garantindo um cessar-fogo bilateral. A guerrilha chegou a organizar um partido político — o União Patriótica — para concorrer às eleições, mas seus principais representantes foram assassinados e as forças rebeldes romperam o acordo.
Em 1999, teve início o último encontro de pacificação, quando o diálogo com o governo de Andrés Pastrana tem início. O ex-presidente concedeu a desmilitarização de 42 mil km2 para antecipar as conversações, na região sulista chamada de El Caguán. A atitude fracassou. As Farc usaram a região para intensificar as atividades, sequestrando dezenas de pessoas — como a então senadora Ingrid Betancourt — e extorquindo empresários para fortalecer suas frentes. As ações levaram Pastrana a cancelar o acordo de paz.
A íntegra do comunicado conjunto Anúncio conjunto do governo colombiano e das Farc:
1. Reunidos em Oslo (Noruega) os porta-vozes do Governo da Colômbia e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Exército do Povo, Farc - EP, estabelecemos a instalação pública da mesa de negociações encarregada de desenvolver o acordo geral para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura. Desta maneira, começa formalmente a segunda fase.
2. Desenvolvimento agrário integral é o primeiro tema da agenda e será abordado a partir de 15 de novembro em Havana (Cuba).
3. As partes designarão porta-vozes que se reunirão em 5 de novembro em Havana para realizar os trabalhos preparatórios necessários.
4. Agradecemos a hospitalidade dos países fiadores deste processo, de Noruega e Cuba, e o generoso apoio dos países acompanhantes: Venezuela e Chile.
Oslo, 18 de outubro de 2012.
Agenda em discussão Conheça os principais pontos de negociação entre o governo e as Farc
» Desenvolvimento agrário Será a primeira questão a ser discutida durante as reuniões, a partir de 15 de novembro, em Cuba. Devem ser acordadas soluções para a correção da desigualdade da posse da terra.
» Participação política Por meio de mecanismos democráticos, a guerrilha pretendem garantir sua participação na política nacional. O Congresso da Colômbia aprovou um marco jurídico para a paz que permitirá anistia a quem abandonar as armas.
» Fim do conflito armado Este ponto engloba tanto o abandono das armas como a reintegração dos rebeldes à sociedade civil. Será buscado o cessar-fogo bilateral e definitivo. Simultaneamente, o governo colombiano intensificará o combate às organizações criminosas. » Narcotráfico Serão discutidos programas de substituição de culturas ilícitas, a prevenção do consumo de drogas e a saúde pública.
» Vítimas Estarão em debate os direitos humanos das vítimas das Farc e a busca de justiça das famílias. As partes envolvidas deverão propôr soluções comuns para possibilitar a verdade e a indenização.
"A mistura de armas e políticas é totalmente nociva. Uma vez finalizado esse conflito, eles devem defender suas ideias sem armas" Humberto de la Calle, negociador do governo da Colômbia
"Uma paz que não aborde a solução para os problemas políticos e sociais (...) equivaleria a semear de quimeras o solo da Colômbia" Iván Márquez, negociador das Farc