O globo, n.31533, 07/12/2019. Mundo, p. 27

 

Opção heterodoxa 

Janaína Figueiredo

07/12/2019

 

 

Novo governo. O presidente eleito Alberto Fernández chega para anunciar seu Gabinete em Buenos Aires: o futuro ministro da Economia, Martín Guzmán (primeiro à direita), tem trajetória acadêmica

Anunciado pelo presidente eleito, Alberto Fernández, para a pasta da Economia, Martín Guzmán já defendeu, em passado recente, uma renegociação da dívida externa argentina, com moratória até 2022. Derrotado à reeleição, o presidente Macri fechou, em 2018, acordo de US$ 57 bilhões com o FMI.

O presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, anunciou ontem seu Gabinete, e indicou para comandar o Ministério da Economia um acadêmico que defende a reestruturação da dívida pública do país, mergulhado numa grave crise econômica, financeira e social, a pior desde 2001. Martín Guzmán, 37 anos, fez grande parte de sua carreira no exterior, ao lado do Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, conhecido crítico do ultraliberalismo. Ao anunciar o Gabinete, Fernández revelou que a equipe já abriu negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Guzmán, nos últimos meses —confirmaram fontes argentinas — aproximou-se de Fernández e do futuro minisros tro da Produção, Matias Kulfas, com uma proposta de renegociação da dívida externa pública, coma retomada dos pagamentos apenas em 2022. E lenão erada equipe dop residente eleito, massua estratégia para encarar um dos principais desafios do novo governo atraiu Kulfas, que foi funcionário dos governos de Cristina—ocupou cargos no Banco Central — trabalha há dois anos no chamado Grupo Callao, criado por Fernández, e acabou atraindo, também, o presidente eleito e seus principais colaboradores.

 DÍVIDA PÚBLICA É 76% DO PIB

Na campanha e, sobretudo, nos últimos meses, Fernández deixou claro que sua prioridade é que a Argentina volte a crescer. E que para isso não aceitará mais pressões do FMI. Mais ainda, não quer mais receber desembolsos do crédito de US$ 57 bilhões concedido a Macri pelo FMI no firmado em 2018. Essa ideia partiu de Guzmán. A Argentina tem, de acordo com dados da Universidade Católica divulgados na quinta feira, cer cade 40% de sua população vivendo abaix od alinhada pobreza. O pensamento de Guzmán,Kulfa sede todos os que formarão o novo governo é simples: se o país continuar gastando dinheiro para pagar dívidas e juros, não terá recursos para reativar o crédito interno, um dos principais motores do crescimento. A Argentina está isolada dos mercados, sua taxa de risco é uma das mais altas do mundo e a escassez de dólares é um problema grave. No governo Macri, a dívida externa passou de US$ 180 bilhões, 28% do PIB, para US$ 290 bilhões, 60% do PIB. A dívida pública passou de 53% do PIB para 76%. A inflação acumula 30% neste ano. Os economistas estimam que as reservas líquidas do Banco Central seriam inferiores a US$ 10 bilhões, enquanto os pagamentos de dívida previstos para 2020 superam US$ 20 bilhões. A conta não fecha, sustentou Guzmán desde que começou a conversar com dirigentes peronistas. Um dos encontros do novo ministro, ocorrido em Nova York, foi com Sergio Massa, peça central da aliança entre peronistas ekirchner istas liderada porFernán dez. Eco moa conta não fecha, disse Guzmán a jornalistas locais, a proposta é radical: suspender todos os pagamentos do principal da dívida externa e dos juacordo por dois anos. Para todos, FMI e credores privados. Paralelamente, defende o economista que trabalha numa sala vizinha à de Stiglitz na Universidade Columbia, devem ser negociadas novas condições de prazos e redução dos montantes totais apagar.

O risco de que o mercado e o FMI não aceitem existe e não é menor. Mas Fernández e seus economistas parecem estar firmes e serão, disseram as mesmas fontes, inflexíveis. A Argentina poderia ser colocada numa situação de calote? Sim. Tudo dependerá do que for conversado nos próximos três meses. A formação do novo Gabinetefoi uma árdua negociação entre Fernández, Cristina, governadores e dirigentes peronistas como Sergio Massa. Houve tensão. A ex-presidente, que terá um forte controle das bancadas legislativas — seu filho, o deputado Máximo Kirchner,serálí der na Câmara —rejeitou alguns nomes e impôs outros da sua confiança. As principais figuras do Gabinete são próximas de Fernández — o chanceler, Felipe Solá, é um dos mais próximos —e ope soda equipe e co nômicaé central. A relação entre o futuro ministro da Economia e Stiglitz facilitou o aval de Cristina, que sempre elogiou a trajetória e as ideias do Prêmio Nobel.

 BOLSONARO IRONIZA

O Gabinete de Fernández tem 20 ministros e três secretários. Muitos deles trabalharam com ele nos governos Kirchner ou participaram de organizações políticas, como a La Cámpora, de orientação peronista e kirchnerista.

— Vamos enfrentar um enorme desafio. Um país com quase 41% (da população) na pobreza. Custa ver alguma base sólida no país. A única coisa sólida é nossa convicção de que serão os pobres nosso primeiro foco de atenção. Se vai haver um privilegiadona Argentina, será apessoa que se encontra em situação de os convoco à epopeia de fazer um novo país —disse Fernández.

No Facebook, o presidente Jair Bolsonaro ironizou a escolha de Guzmán. Ele destacou que o argentino já recomendou um livro de Laura Carvalho, ressaltando que a economista assessorou a última campanha presidencial do PSOL. O post de Bolsonaro foi acompanhado de uma foto do livro “Valsa brasileira”, de Carvalho, elogiado por Guzmán.