O globo, n.31534, 08/12/2019. País, p. 04

 

Controle sem lei 

Suzana Correa 

08/12/2019

 

 

Câmara prepara regulação do uso de dados pessoais por forças de segurança

Em busca de aumentar a eficiência e agilidade no trabalho da polícia, forças de segurança de todo o país têm investido em novas ferramentas de vigilância high-tech, como câmeras de reconhecimento facial, drones e filmadoras acopladas às fardas de policiais militares (as chamadas body cams). A rápida modernização, porém, preocupa especialistas em direito da tecnologia e proteção de dados, que alertam para o vácuo legal sobre o qual se expande o uso das novas tecnologias: não existe uma lei específica que regule a coleta e o tratamento de informações pessoais em atividades ligadas à segurança pública. Erros cometidos após o uso das ferramentas acenderam o alerta daqueles que defendem uma maior regulação sobre o tema.

Em julho no Rio, duas pessoas foram presas equivocadamente por meio da tecnologia de reconhecimento facial. No segundo dia em que câmeras de reconhecimento facial funcionavam na cidade, uma mulher inocente foi confundida pelas câmeras com outra condenada e presa por assassinato desde 2015. A confusão só foi esclarecida quando familiares da inocente atestaram sua identidade na delegacia.

PROJETO ESPECÍFICO

A discussão sobre uma Lei de Proteção de Dados para a segurança pública já chegou na Câmara dos Deputados. Há duas semanas, o presidente, Rodrigo Maia (DEMRJ), instituiu uma comissão de juristas para elaborar um anteprojeto de lei específica sobre tratamento de dados pessoais na área. A comissão tem 120 dias para concluir seus trabalhos.

— A grande questão é que Lei de Proteção de Dados, que entra em vigor em agosto de 2020, não se aplica à investigação criminal ou a assuntos de segurança. Existe um grande vácuo legislativo no Brasil sobre isso — alerta Juliano Maranhão, professor de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisador de inteligência artificial. Comandante do 37º Batalhão de São Paulo, que monitora a região do Capão Redondo, na periferia da cidade, o tenente-coronel Robson Cabanas defende o uso de câmeras nas fardas dos policiais:

— Nós fizemos a lição de casa. Toda imagem coletada pelas body cams é tratada com a seriedade e lei que embasa a privacidade de provas jurídicas. O acesso a elas é extremamente controlado por mecanismos como marcas d’água obrigatórias indicando quem acessou cada vídeo, para evitar vazamentos. Na Bahia, 86 prisões foram feitas a partir do cruzamento entre mandados de prisão e imagens de cem câmeras de reconhecimento facial espalhadas por Salvador e região metropolitana. Superintendente de Tecnologia da Secretaria de Segurança baiana, o coronel Marcos Oliveira acredita que o recurso aumentou a eficiência da polícia. Foram investidos R$ 18 milhões no sistema.

DEBATE GLOBAL

O debate sobre o uso do reconhecimento facial é global. Na Califórnia, berço de gigantes da tecnologia, acidade de San Francisco proibiu o uso das câmeras de reconhecimento facial pela polícia. Grupos de defesa das liberdades civis alegam que o uso da ferramenta poderia aumentar o poder repressor do poder público. O reconhecimento facial tem sido criticado por especialistas por um possível viés discriminatório. Estudos mostram que o percentual de erro da inteligência artificia lé maior quando envolve negros, mulheres e crianças. A hipótese dos pesquisador e sé que isso acontece porque a inteligência é “treinada” para reconhecer rostos por meio das milhares de imagens na internet, a maioria de homens brancos. Com um banco de dados menor para outros tipos de rosto, a possibilidade de erro aumenta.

Outro ponto polêmico é o uso dessas tecnologias pelas forças de segurança em casos de protestos. Nas manifestações que ocorrem em Hong Kong desde março de 2019, ativistas têm coberto o rosto para impedir que o governo chinês identifique os opositores do regime, acusado de usar tecnologias de vigilância para perseguir e controlar a população do país. —Informação traz podere, como todo poder, pode ser usado de forma abusiva. Entendemos hoje que o cidadão não pode ficar vulnerável diante do novo potencial informacional dos que exercem o monopólio do uso da força — declara Laura Schertel, relatora da comissão criada pelo presidente da Câmara.

Enquanto não existe um marco regulatório para a obtenção e armazenamento de dados pessoais pelas forças de segurança, as polícias avançam na área sem maior controle. No 37º Batalhão de São Paulo, 120 câmeras são usadas nas fardas dos policiais. Quando o agente aciona um botão, grava e armazena o vídeo. Na prática, mesmo quando não é acionada, a câmera capta todas as imagens. Enquanto alei não é criada, ouso desses dados é regulado por preceitos genéricos de privacidade determinados pela Constituição e demais códigos jurídicos, além de normas de direitos humanos e regulamentos internos dos órgãos de segurança.

Vácuo legal no uso de tecnologia pela polícia

> O QUE DIZ A LEI

A Lei Geral de Proteção de Dados é a mais importante legislação específica sobre o tema no Brasil, sancionada em 2018 e em vigor a partir de 2020. Estabelece que nenhum dado pessoal ou sensível pode ser coletado sem consentimento do cidadão. Além disso, ele deve ser informado sobre qual o objetivo e meio de coleta deste dado, o tempo em que ficará armazenado e sob responsabilidade de quem, se será compartilhado (e com quem) e quais as responsabilidades de quem lidará com o dado.

> A BRECHA

Segundo o artigo 4 da LGPD, estas regras valem tanto para empresas quanto órgãos do governo, exceto quando esses dados foram coletados para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação.

> O QUE PRECISA SER REGULADO

Falta uma lei específica que regule no âmbito da Segurança Pública toda a coleta, produção, utilização, acesso, distribuição, armazenamento, eliminação, avaliação, modificação, difusão ou extração de dados. As polícias têm se guiado por leis genéricas e abrangentes como a Constituição e o Marco Civil da Internet. São essas legislações que são usadas como base para arbitrar disputas jurídicas sobre o assunto — um problema é que elas são de uma época em que novas tecnologias como drones e body cams ainda não existiam.

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No Rio e São Paulo, casos de abuso policial desafiam políticas de segurança 

Bernardo Mello 

08/12/2019

 

 

A ausência de regulamentação para o uso de novas tecnologias na área de segurança ocorre enquanto a atuação das polícias tem sofrido contestações por excessos em operações nos dois maiores estados brasileiros. No Rio e em São Paulo, cujos governadores se elegeram com apelo a ações repressivas da PM, registraram avanço da letalidade policial em 2019. Segundo a Ouvidoria das Polícias de São Paulo, o estado somou 697 mortes decorrentes de ação policial até outubro, contra 686 no último ano.

Após evidências de abuso policial na operação que deixou nove mortos em Paraisópolis, no último fim de semana, o governador paulista João Doria (PSDB) recuou e admitiu a necessidade de inibir o “uso de força desproporcional e desnecessária”. Inicialmente, Doria havia afirmado que “nada mudaria” na segurança pública de São Paulo ao comentar o saldo da operação. Ao explicar seu recuo, o governador se disse “chocado”, após assistir a vídeos de abusos policiais na comunidade. Em um deles, gravado após um baile funk em outubro, um policial aparece agredindo moradores a esmo com uma vara, enquanto sorri. O PM, identificado como Rodrigo José de Matos Soares, foi afastado.

Já o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), foi comunicado esta semana pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin para que se manifeste sobre a política de segurança pública do Rio, que atingiu seu recorde de letalidade policial em 2019 —foram 1.546 até outubro, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), o maior número desde 1998. O pedido de Fachin ocorreu em resposta a uma ação movida pelo PSB no mês passado, que contesta o salto de mortes dedo correntes de intervenção policial e o uso de helicópteros como plataforma de tiro no estado.

Após declarar na campanha eleitoral que policiais teriam a orientação de “mirar na cabecinha” caso identificassem qualquer pessoa portando um fuzil, Witzel tem sido confrontado por sucessivos relatos de mortes de pessoas sem envolvimento com conflitos durante operações policiais. O caso mais recente foi o do humorista Diego de Farias Pinto, o Bunitinho, morto com outras três pessoas após o veículo em que estavam, no Morro do Dendê, ser alvejapor 19 tiros.

A perícia da Polícia Civil ainda vai determinar a origem dos disparos. Dois dias antes, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) denunciou o policial Rodrigo José Soares pela morte da menina Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão. A investigação concluiu que um disparo do PM atingiu Ágatha após ricochetear em um poste. Segundo a denúncia do MP, o policial havia atirado contra duas pessoas em uma moto, por acreditar que portassem um fuzil —a investigação, porém, concluiu que o PM se confundiu com uma esquadria de alumínio.