Correio braziliense, n. 20492, 29/06/2019. Economia, p. 8

 

Avanço parado no caminho

Luiz Calcagno

29/06/2019

 

 

São Gabriel da Cachoeira (AM) — Distante 2,7 mil quilômetros da capital federal em linha reta e acessível somente por barco ou avião, São Gabriel da Cachoeira (AM) é um caldeirão de forças políticas em disputa fervendo a fogo brando. De um lado, grupos formados por lideranças de diversas etnias defendem o direito às terras indígenas e o uso tradicional desses espaços. De outro, cooperativas desses mesmos povos rejeitam o modus operandi de relação com o governo, e afirmam que a demarcação de terras lhes dá direito à exploração mineral, embora não haja legislação para a atividade. A mistura borbulha há 25 anos. Mais especificamente, desde a implementação do Plano Real, decisivo para a transformação da região já nos primeiros passos.

O Correio esteve no município perdido no caminho das águas em 1994, na chegada da moeda que freou o preço do ouro do garimpo e congelou o fiado do comércio. As notas valiam mais e todo mundo guardava o dinheiro em casa. De volta à Cabeça do Cachorro — região na fronteira com Colômbia e Venezuela e parte do município de São Gabriel —, a bordo do Amazônia, um turbo-hélice da Força Aérea Brasileira, duas décadas e meia depois, a reportagem encontrou uma cidade diferente, com duas agências bancárias — uma do Banco do Brasil e outra do Bradesco — e uma lotérica da Caixa. Agora, o real vale menos, a lista de devedores deu lugar à compra parcelada e o garimpo é atividade escusa, com pouca influência.

A maioria das transações é feita em dinheiro. Principalmente no fim do mês, quando falta papel moeda nos bancos e muitos comerciantes escondem as maquininhas sob a desculpa de “problemas técnicos” para obrigar a população a gastar o que guardou debaixo do colchão. Os valores que circulam na região vêm dos salários do Exército, que incorporou vários indígenas; do funcionalismo público, composto pela prefeitura, órgãos estaduais e federais; e do Programa Bolsa Família, que atende parte considerável das comunidades do Rio Negro. No núcleo urbano, muitos moradores apostam no comércio para gerar renda.

Os produtos do comércio são mais caros, porque só chegam de barco, e o frete pesa. Quando o rio está baixo, é preciso trocar de embarcação no trajeto e o custo aumenta. O real perdeu poder de compra, mas o frete se manteve estável. Os proprietários de barcos sabem que os serviços dependem de uma população de baixo poder aquisitivo e um aumento nos valores poderia paralisar a economia. Há, ainda, uma sensação generalizada de estagnação no desenvolvimento, que começa a incomodar os moradores.

Ismael Oliveira, 65, Baré, e Maria Pedrina Costa, 60, são de Iauaretê, na fronteira com a Colômbia. Ismael, que carrega cargas em embarcações, está prestes a se aposentar, e mal fala português. Arranha um espanhol misturado com o dialeto da comunidade. O casal conversa em tukano e a mulher traduz as falas do marido. “Conseguimos um terreno em São Gabriel da Cachoeira, mas não temos dinheiro para terminar de construir a casa”, conta. Eles viajam para sacar o salário de Ismael e o Benefício de Prestação Continuada de Maria, além de comprar alimento.

O caldeirão amazônico
As várias etnias do Rio Negro representam cerca de 76% da população local. Por isso mesmo, diversos problemas políticos do município estão ligados às causas indígenas. Difícil dizer quando o caldo entornará, mas a goma dá sinais de fervura. O discurso base das lideranças tradicionais e das cooperativistas é parecido — e não só porque é proferido em nheengatú, a língua comum a todos. Todos querem o desenvolvimento dos povos e da localidade como um todo. Muda, no entanto, a maneira de promoção desse desenvolvimento: o modelo vigente, focado na manutenção da cultura dessas comunidades, sabidamente mais lento; e o extrativista, que prioriza a lógica capitalista predatória, supostamente mais rápido.

O cenário é resultado das transformações e sucessivas crises enfrentadas pelo país. O Bolsa Família, por exemplo, fundamental para a população mais pobre, não tem o mesmo efeito e ainda pode precarizar a situação das diversas etnias às margens do rio, se não vier acompanhado de políticas públicas para garantir os diversos modos de vida desses povos. Políticas essas que se tornaram impraticáveis desde os cortes do último governo Dilma. A crise do modelo político brasileiro que, em âmbito nacional, ajudou a eleger Jair Bolsonaro, se repete no microcosmo, com a disputa por protagonismo, sendo os cooperativistas aderentes ao governo federal.

Nem todas as mudanças foram negativas. A maioria dos jovens indígenas faz algum curso superior e não pensa em parar antes da especialização. Caso da bem articulada universitária Luziane Aires Miranda, 27 anos, da etnia Tariana. Ela lembra do poder de compra da moeda na primeira infância. “Quando eu era criança, tudo era mais barato. Meu pai ganhava R$ 300 e fazíamos compras consideráveis. Agora, ele ganha em torno de R$ 2 mil e mal conseguimos nos manter”, relata.

A família tem conta em banco desde 2002, e a estudante está concluindo biologia pelo Instituto Federal do Amazonas. Além do pai, que pilota embarcação, o irmão de Luziane, Renival, 22, praça do Exército, ajuda com o soldo. A mãe, Luzia, é dona de casa. De qualquer forma, a região continua a atrair pessoas de diversas partes do país, que imigram em busca de oportunidades. Só o tempo dirá se desse caldeirão sairá mais uma refeição indigesta, a somar-se a tantas outras em 350 anos de história do município, ou resultará em um saboroso tacacá, com tudo que o prato tem direito.

“Meu pai ganhava R$ 300 e fazíamos compras consideráveis. Agora, ele ganha em torno de R$ 2 mil e mal conseguimos nos manter”
Luziane Aires Miranda, universitária

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O Bolsa Família e o "aviamento"

29/06/2019

 

 

 


Responsável pela distribuição de renda e por tirar milhões de brasileiros da pobreza, o Programa Bolsa Família encontra limitações ao atingir as fronteiras das terras indígenas do país. Sem dispositivos específicos para atender a realidade desses povos, o benefício se subverte ao cruzar a linha invisível. Se transforma em desmobilizador de comunidades ou até em um veículo de endividamento. Existem casos em que comerciantes ficam com os cartões de beneficiados e mandam, como contrapartida, um valor abaixo do transferido pelo governo em produtos, além de cobrar uma taxa para o próximo mês. O sistema é chamado de “aviamento”.

As subversões do programa afetam diretamente as condições de vida dos grupos tradicionais. Em 2016, segundo dados do extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), do total de famílias cadastradas no programa, 0,4% pertenciam a esses povos. No mesmo ano, segundo levantamento publicado pelo Instituto Socioambiental (Isa), 48% das comunidades do Rio Negro recebiam o benefício, que transferiu R$ 21.614.775 para São Gabriel da Cachoeira.

Na Cabeça do Cachorro, integrantes de comunidades chegam a esperar até três meses para ir à cidade sacar o benefício, por conta das longas viagens de barco, que podem durar 10 dias — ida e volta — e custar até R$ 600. Os hupd’äh, que já foram considerados povos afastados, se mudaram para o núcleo urbano a fim de receber o benefício. O movimento aumenta a vulnerabilidade social de indígenas. Sem trabalho ou apoio, há o risco de dependência de álcool e drogas e também de suicídio. (LC)

PARA SABER MAIS

Endividamento sistemático

No sentido literal, aviamento é a capacidade de um estabelecimento de produzir lucro. Na Amazônia, porém, é uma forma antiga de endividamento. O indígena, chamado de freguês, presta um serviço e recebe em escambo. Na relação, o produto oferecido é repassado a um preço abaixo do mercado, enquanto ele leva ferramentas e alimento a um preço bem acima do operado. O beneficiado, chamado de patrão, define o preço das mercadorias. É comum que ele também tenha um patrão, em uma hierarquia comercial de troca e endividamento, como explica o antropólogo e doutor em memória social do Museu Paraense Emílio Goeldi, Márcio Meira.

Segundo ele, um dos produtos que se tornou alvo dos patrões é o Bolsa Família. “O que eu argumento é que a relação do aviamento não é estritamente econômica. É tão antiga que forjou um modelo de relação sociocultural, pautando relações econômicas. Pode ser com a extração de cipó, o garimpo na década de 1990 ou Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada”, detalha.

“O próprio MDS chegou a fazer um levantamento sobre o impacto do Bolsa Família na região. Eu fiz pesquisa de campo e comprovei. Nesses casos, o patrão fica na cidade com os cartões das famílias, que são fregueses, o que é ilegal. O aviamento persiste. Na época da borracha, o grande patrão ficava em Liverpool, na Inglaterra. O segundo, em Manaus: era o português Joaquim Gonçalves de Araújo, que tinha vários outros abaixo. É uma questão cultural. Então, como superar isso? Existem tentativas, mas não uma saída”, reflete o estudioso.

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Histórias de uma moeda

29/06/2019

 

 

 

Os R$ 100 encolheram

Apesar de ter derrotado a hiperinflação, o Plano Real não impediu, ao longo do tempo, a redução do poder de compra da população. Para comprar os mesmos produtos de 1994 com os R$ 100 da época, o brasileiro precisaria hoje de R$ 608,18, segundo cálculos do BC. Ou seja, os R$ 100 da época do lançamento do Real correspondem a 16,44% dos R$ 100 de hoje.

O pãozinho virou vilão
Para mostrar a força do real durante o seu lançamento, em julho de 1994, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, foi à padaria Peres, no Gama. O pãozinho que ele comeu ficou, desde então, 693% mais caro pelas contas do IBGE, com reajuste acima da inflação (508%). A padaria, depois da fama repentina, faliu.

O frango encareceu
A autônoma Maria Selma dos Santos, 58 anos, não lembra ao certo do preço do frango no período de hiperinflação, mas tem certeza de que o produto está bem mais caro. Símbolo do Plano Real, o frango subiu, desde o lançamento da moeda, 454%, custando, na média, R$ 8,90 o quilo. Para ela, quase tudo no mercado está mais caro, o que atrapalha nas contas de casa.

Iogurte tem alta de 269%
A primeira vez que o aposentado Altamir Oliveira, 58 anos, viu um iogurte foi numa cerimônia na Presidência da República em 1980, onde trabalhou. Ele lembra que era raro encontrar o produto nos supermercados, e, quando tinha, eram poucas opções. “Depois do Plano Real, o iogurte apareceu mais. Hoje, está bem mais caro”, diz. Em 25 anos, o produto teve reajuste médio de 269%.

Bolsonaro contra a URV
Um dos pontos cruciais para a criação do Plano Real veio com a necessidade de aprovação da Medida Provisória nº 434, que colocaria na vida dos brasileiros a Unidade Real de Valor (URV). PT e PDT, da oposição, colocaram obstáculos na sessão que discutiu o pedido do governo. Entretanto, o único que votou contra foi Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PPR.