O Estado de São Paulo, n. 45976, 03/09/2019. Metrópole, p. A16

 

Como a Amazônia chegou a 30.901 focos de incêndio

Giovana Girardi

03/09/2019

 

 

Quantidade está bem acima da média histórica; pesquisadores explicam que devastação é rápida e processo de regeneração, lento

Em agosto, a Amazônia teve uma quantidade de queimadas bem acima da média histórica para o mês. Foram 30.901 focos de incêndio (quase mil por dia) ao longo do mês, ante uma média de 25.853 para o período entre 1998 e 2018. O número é quase o triplo do registrado em agosto do ano passado, que teve 10.421 focos, e é também o mais alto desde agosto de 2010 – ano de seca histórica, que teve 45.018 focos. Setembro começou quente, com 980 focos no primeiro dia.

Análises feitas pela agência espacial americana (Nasa) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) indicam que os incêndios estão correlacionados com a alta de desmatamento no ano. Após o corte, pilhas de madeira são feitas para limpar a área. É floresta já derrubada, mas grande parte do fogo acaba escapando e atinge a mata que permanece em pé. Unidades de conservação e terras indígenas estão entre as florestas atingidas.

A extensão desse impacto só deve ser conhecida quando a fumaça baixar e for possível ver melhor como a vegetação foi afetada, mas estudos anteriores e experimentos controlados mostram que os efeitos podem ser devastadores.

“Ouvi algumas pessoas argumentando nos últimos dias que a floresta se regenera, então não haveria problema. Mas a verdade é que a floresta não se regenera dessa maneira”, disse ao Estado a bióloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford, que estuda o impacto do fogo na biodiversidade e nos estoques de carbono na Amazônia. “A Amazônia não é um ecossistema acostumado com fogo periódico. É úmida, não queima de modo natural com frequência, então, não evoluiu com incêndios, como ocorreu com o Cerrado. A floresta não tem um mecanismo de recuperação rápida, tanto em termos de biodiversidade quanto em estoque de carbono.”

Para queimar, explica a pesquisadora, em geral alguém tem de pôr fogo na floresta. Segundo Jos Barlow, professor de Ciência da Conservação da Universidade de Lancaster, e Alexander C. Lees, professor de Biologia da Conservação na Universidade Metropolitana de Manchester, ambos com mais de uma década de pesquisas na Amazônia, em florestas tropicais não perturbadas o fogo vai consumindo a floresta por baixo. “As chamas avançam apenas de 200 a 300 metros por dia e raramente ultrapassam os 30 cm de altura, queimando apenas folhas secas e madeira caída”, explicam em artigo publicado nesta semana no site Ambiental Media, de divulgação científica. “Mesmo um incêndio de baixa intensidade pode matar metade das árvores. Enquanto árvores pequenas são mais suscetíveis em um primeiro momento, as maiores geralmente morrem nos anos seguintes.”

Futuro. Erika afirma que esse processo de morte das árvores pode durar pelo menos cinco anos depois do fogo. “As que nascem depois são fininhas, vão levar centenas de anos para chegar ao tamanho daquelas que morreram. Além disso, vão vir primeiro as espécies pioneiras, que também têm menos capacidade de armazenar carbono”, diz. “Mesmo passados 30 anos após o fogo, essa nova floresta ainda armazena 25% menos carbono do que uma não queimada”, explica, citando estudo publicado no ano passado na revista Philosophical Transactions B, que quantificou no longo prazo biomassa, mortalidade e produtividade de madeira de locais queimados.

Erika e Barlow estão entre os autores do estudo, que contou com 21 pesquisadores especialistas na Amazônia. “Incêndios em florestas tropicais podem reduzir significativamente a biomassa por décadas ao aumentar a taxa de mortalidade de todas as árvores”, escreve o grupo. “Uma floresta sem distúrbios tem árvores gigantescas. Mas, quando elas morrem, surgem clareiras, árvores finas, muito cipó. Vai virando um queijo suíço. Em vez da sombra constante, começam a entrar muito sol e vento dentro da floresta. A temperatura e a umidade mudam. Muitas espécies da fauna e flora acabam não encontrando mais condições de ficar nesses locais”, complementa Erika. “Nesse cenário, a floresta fica mais seca, mais inflamável e, desse modo, mais vulnerável a novos eventos de fogo.”

O QUE O FOGO FAZ COM A FLORESTA

- Como a Amazônia é um ambiente úmido, ela de modo natural não costuma queimar

Incêndios em florestas tropicais nunca antes perturbadas não causam o impacto visual de dosséis em chamas

O fogo avança cerca de 200 a 300 metros por dia e raramente ultrapassa os 30 cm de altura, queimando folhas secas e madeira caída

Árvores pequenas são mais suscetíveis em um primeiro momento

As maiores geralmente morrem nos anos seguintes

- Sem adaptação natural para lidar com incêndios florestais, espécies da floresta tropical são muito sensíveis a eles. Mesmo um incêndio de baixa intensidade pode matar metade das árvores

- Isso tem impacto nos estoques de carbono da floresta. As árvores grandes são as que mais armazenam carbono

- Uma vez queimadas, as florestas retêm 25% menos carbono do que as florestas não queimadas, mesmo após três décadas de crescimento

O cenário fica ainda pior quando o fogo atinge área que já tinha queimado antes

INFOGRÁFICO/ESTADÃO ILUSTRAÇÃO: FARRELL

Nesse caso, árvores mortas anteriormente viram combustível para uma verdadeira fogueira

Como elas caíram, o dossel está aberto, o que faz com que as chamas atinjam as copas das árvores que estão de pé

Quase todos os indivíduos remanescentes morrem

As queimadas deste ano na Amazônia parecem estar mais relacionadas com o aumento no desmatamento. A vegetação cortada é empilhada e queimada. Com os ventos e sem trabalho de aceiro, isso se espalha pegando a floresta em pé ao redor. Até reservas indígenas foram afetadas

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Retardar a catástrofe amazônica

Gilles Lapouge

03/09/2019

 

 

Os incêndios, as chamas, as cinzas e as brasas da Amazônia continuam a ser manchete na imprensa francesa. Mas as análises se aperfeiçoam. São buscadas soluções para evitar, ou pelo menos retardar, a catástrofe na Amazônia.

Diversas associações, entre elas a Sherpa, especializada na assistência a vítimas de crimes econômicos, esclarecem que, além da responsabilidade do Brasil e de Bolsonaro, a culpa é também das empresas francesas pelos incêndios na Amazônia. Sherpa lembra inicialmente que os incêndios têm por fim estender as culturas de soja para produção de aves e gado para consumo. No caso dos alimentos transgênicos, regados com pesticidas que poluem os solos, a soja é produzida no âmbito do processo de açambarcamento de terras em prejuízo das populações indígenas.

Tudo isso é, em seguida, adquirido nas grandes áreas. Empresas francesas são questionadas: Bigard, o grupo Bertrand (Quick e Burger King) e E.Leclerc. De fato, essas companhias não conseguiram traçar a proveniência da soja que entra em suas cadeias de aprovisionamento e assegurar que ela está isenta de qualquer desmatamento. “É preciso acrescentar que Carrefour e Casino, que possuem redes de supermercado no Brasil, estão especialmente envolvidos.”

As empresas do setor agroalimentar não são as únicas implicadas. Em seu relatório sobre a Amazônia, Amazon Watch já citava as empresas francesas Guillemette ET Cie e o Groupe Rougier, que importam madeira da Amazônia de zonas onde existem fortes suspeitas de exploração florestal ilegal.

O Tribunal Penal Internacional informou que desde setembro de 2016 passou a analisar crimes que “envolvem devastações ecológicas, exploração ilícita de recursos naturais ou expropriação de terras”. E o texto de William Bourdon conclui: “Ora, a política de Bolsonaro infringe várias práticas condenadas pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 2002”.

Outro ângulo foi analisado por Romain Espinosa, do CNRS da Universidade de Rennes. O título do seu artigo é claro: “Podemos salvar a floresta continuando a comer carne?”.

“Uma das causas do drama da Amazônia é conhecida há anos: é o consumo de carne, sobretudo nos países europeus e americanos e de maneira crescente na Ásia. Em 2015 um europeu consumia 61 quilos de soja, sendo que 57 quilos eram de maneira indireta através dos animais alimentados com soja, o mesmo valendo para os ovos, o peixe, o leite, que ele consome.

Romain Esposito cita um estudo da Poore et Nenecek de 2018 na revista Science: “100 quilos de proteína de vaca necessitam em média de 164 m² de terreno por ano. Pelo contrário, não são necessários mais do que 3,4 m² para produzir 100 gramas de proteína de ervilha e 2,2 m² para 100 gramas de proteína de tofu. Conclusão: passar a comer legume e vegetais parece ser uma solução imperativa na luta contra o aquecimento do clima: serão menos florestas desmatadas, menos consumo de água, menos acidificação dos solos (...). A luta contra a mudança climática não deve se reduzir a colocarmos somente vegetais no nosso prato. Mas ela não poderá ser levada a cabo sem isso.