O globo, n.31381, 08/07/2019. País, p. 04

 

Munições sem controle

Renata Mariz 

08/07/2019

 

 

Ofícios de 516 páginas, que integram um inquérito civil do Ministério Público Federal (MPF), traçam um retrato preocupante da falta de controle de munições nas polícias militares e civis do país. A análise das comunicações enviadas pelos próprios órgãos, às quais O GLOBO teve acesso, e apurações posteriores revelam que práticas rudimentares, como anotações em livros ou uso de planilhas de computador, são a regra no monitoramento do material na maior parte dos estados. Ao todo, cinco governos têm algum sistema eletrônico para munições da Polícia Militar ou Civil.

As polícias militares de dez governos afirmaram não ter controle eletrônico das munições, sete unidades da federação se negaram a responder aos questionamentos e seis deram informações vagas sobre os métodos de controle. Apenas quatro estados —Piauí, Rio Grande do Sul, Espírito

Santo e Santa Catarina — informaram ter sistemas eletrônicos de controle que monitoram o destino das munições de seus batalhões, com o registro de aquisição, distribuição, identificação por número de lote, devolução e casos de extravios.

Nas polícias civis, a situação de controle de munições é mais precária: somente Espírito Santo e Mato Grosso declararam ter algum sistema eletrônico de monitoramento de projéteis. O MPF se baseou, ao questionar os estados, nas diretrizes internacionais de gestão de munição difundidas pelo Escritório das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.

Doze estados admitiram não ter nas suas polícias civis um controle eletrônico de munição, entre eles o Rio de Janeiro. A metodologia mencionada por alguns foi “planilha Excel” ou “programa no Windows”, sem especificar qual. Sete unidades da federação não responderam ao MPF e seis deram informações vagas.

Chamam atenção casos de estados com ferramentas modernas de gerenciamento em uma força, mas não na outra. A Polícia Civil de Santa Catarina, por exemplo, controla distribuição e devolução de munições via formulário físico (tabela). Já a Polícia Militar catarinense, por sua vez, informou a existência do Sistema de Gerenciamento de Armas, Munições e Equipamentos (Sigame), com uma série de recursos de pesquisa, desde controle de estoque à checagem de munições existentes na matrícula de qualquer policial militar.

No Rio Grande do Sul, que tem o sistema “Munition” na PM, cobrindo os principais controles, a mesma contradição. Ofício mostra que a Polícia Civil do estado “não possui

implementado nenhum sistema de dados informatizado que permita o controle de recebimento e distribuição das munições adquiridas. Esse controle é realizado manualmente, mediante lançamento em planilha de dados”.

NO RIO, REGISTRO EM LIVRO

A PM do Rio encaminhou cópia de uma portaria ao MPF, sem esclarecer que tipo de controle faz. A Civil informou fazer o registro da movimentação de munições “em livro” e “demodofísico” . “Informoque no âmbito da Secretaria de Estado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a forma de controle dos lotes de munições é feito de modo físico, através do registro diário, em livro próprio, onde são lançadas as informações dos servidores que receberam as munições, constando nome, cargo, matrícula, assinatura, quantidade de munições e seu referido lote. Não há controle eletrônico de lote”, diz o ofício.

Responsável pelo inquérito civil no MPF, o procurador da República Antonio Edílio Magalhães Teixeira remeteu a documentação aos procuradores-gerais de Justiça das 27 unidades da Federação pedindo providências, diante do quadro generalizado de falta de controles mínimos de munição. Ele critica a legislação brasileira por não estabelecer regras detalhadas sobre como deve se dar esse gerenciamento.

—Não basta registrar as quantidades recebidas e distribuídas. É preciso individualizar os repasses aos profissionais com identificação do lote, registrar os extravios, as devoluções. E monitorar a data de validade, uma prática ignorada mas que coloca em risco a vida do próprio policial —afirma Teixeira.

Segundo o procurador, é inadmissível que não haja uma fiscalização maior de munições compradas em volume elevado pelo poder público, de calibres quase sempre restritos e que constantemente aparecem em poder do crime. Desvios dentro das corporações são uma das principais preocupações do procurador:

—É o Estado alimentando o crime. A munição que era da força de segurança acaba se voltando contra os policiais e, geralmente, só se sabe que houve o desvio quando o material é apreendido.

Os casos de desvios são corriqueiros. Uma operação em dezembro do ano passado, revelada pelo GLOBO, mostrou um esquema que levava munição de fuzil da Polícia Militar do DF e do Comando do Exército para abastecer facções criminosas no Rio de Janeiro. Um militar ligado ao Corpo de Bombeiros do DF que era lotado no Gabinete de Segurança Institucional, no Palácio do Planalto, foi preso por envolvimento no crime.

Uma reclamação dos estados que se repete nos ofícios enviados ao MPF é o tamanho dos lotes. Pela norma do Exército, munições vendidas a órgãos de segurança pública devem ser marcadas com um número de identificação em lotes de até 10 mil unidades. A quantidade é considerada excessiva para fins de controle.