O globo, n.31380, 07/07/2019. Mundo, p. 25

 

Memórias do realismo 

André Duchiade 

07/07/2019

 

 

Apesar de o governo de João Figueiredo, o último general da ditadura, ser muitas vezes descrito como “patético e errático” ou “um acúmulo de fracassos” — nas palavras de E lio Gaspa ri—,ê xi de 1979 a 1985 entusiasmam historiadores. Comandado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, o Itamaraty, em um país imersona crise da dívida externa e em transição política, contornou situações delicadas como a Guerra das Malvinas, a ascensão de um governo socialista sob influência cubana no Suriname e divergências nas relações com os Estados Unidos.

Mais de 15 mil páginasdividida sem 49 volumes encadernados, se tornam acessíveis a pesquisadores a partir desta semana,um trabalho do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. Trata-se da íntegra, durante o governo Figueiredo, das “Informações ao Senhor Presidente”, instrumento que, aos cuidados do chanceler, organizava a correspondência internacional do Planalto.

Por meio do acompanhamento diário da agenda internacional de Figueiredo, emerge uma diplomacia independente e altamente realista, que, por semelhança de temas, mas disparidade de propostas e soluções, evoca e contrasta com o Itamaraty de Ernesto Araújo:

— Existe a fantasia de que não é possível fazer política externa quando o país atravessa crises. O período mostra que, mesmo em situação de penúria absoluta ecrises políticas incessantes, há espaço para uma diplomacia criativa—afirma o pesquisador Matias Spektor, da FGV, que recebeu o arquivo de Saraiva Guerreiro nas últimas semanas david a deste, em 2011, e o doou ao CPDOC. —Estoura a

Guerra nas Malvinas, surge uma ameaça no Suriname, o Brasil se choca com os EUA, e, em todo sesses casos, observas e um ativismo diplomático surpreendente.

Um ofício de Saraiva Guerreiro ao presidente, relatando encontro como chanceler argentino Nicanor Costa Méndez em 1982, dá atônica da correspondência no que diz respeito a Washington. O republicano Ronald Reagan, então na Casa Branca, tinha boas relações com Figueiredo, e o Brasil dependi ade anticomunismo visceral do americano despertava simpatias no brasileiro, e o déficit no balanço de pagamentos brasileiro, o maior até então, mais de uma vez levou representantes brasileiros a Washington de pires na mão.

“O Brasil mantinha, e pretendia continuara manter, boas relações com os EUA, mas nunca tivéramos a pensar que aquele país fizesse nada que não fosse de seu estrito interesse econômico e estratégico. (...) Isso não era uma razão para não mantermos boas relações com os EUA, mas era evidente que bastava a evolução histórica nos últimos 20 ou 30 anos para se deduzir que essas relações não podem ser o fulcro das Relações Exteriores”, escreveu o chanceler.

INVASÃO PELA AMAZÔNIA

A afinidade ideológica e a dependência econômica não apagavam diferenças. Em telegramas, Guerreiro aponta que as intervenções americanas na América Central provaram-se “ineficazes”, já que os países permaneciam politicamente instáveis. O

precedente serviu de alerta para o caso do vizinho Suriname, que, após um golpe de Estado em 1980, passou a ser comandado pelo coronel Dési Bouterse. Washington temia que, a partir de influência de Havana, a ex-colônia holandesa passasse por processo de “cubanização”. Para evitar o risco, a Casa Branca planeja invadir o país a partir da Amazônia brasileira, coma participação do Exército nacional.

Na avaliação do chanceler, “a condição de país limítrofe” do Suriname conferia “sensibilidade especial” à situação. Uma intervenção militar, como pretendiam os americanos, propiciaria “o surgimento deres sentimentos duradouros no continente” e“a transferência para a área de tensões globais e a conflitos ”, caso a União Soviética e Cuba reagissem.

O chanceler concluiu, a partir de uma missão ao Suriname da qual participou o então conselheiro Luiz Felipe de Seixas Corrêa —hoje sogro de Ernesto Araújo — que a melhor opção era “atrair o governo Bouterse por meio de uma rápida intensificação (através da cooperação técnica e outros meios) da presença brasileira ”, que substituiria a cubana. A partir de oferta feita na Missão Venturini, em abril de 1983, o Brasil apresentou recursos, os cubanos se afastaram do país e aguerra planejada por Washington foi abortada. Ressalvadas as diferenças — o Suriname é muito menor, tinha um governo mais instável e disposto a dialogar —, o caso ser vede lição para a atual relação coma Venezuela, segundo o embaixador aposentado Rubens Ricupero.

—Fizemos com que Bouterse abrisse mão de ajuda militar, técnica e econômica dos cubanos. Tínhamos razão, o Suriname não virou um regime cubanizado, não houve intervenção e não violamos nossa tradição—afirmou Ricupero.

—Num caso como o da Venezuela, se o ministro fosse Guerreiro, nunca teria embarcado na canoa furada de reconhecer o líder opositor Juan Guaidó como presidente legítimo. Ele conhecia direito internacional, sabia que só se deve reconhecer quem tem controle do território. Não é questão de preferência ou gosto, mas de realidade.

Orientado por Guerreiro, Figueiredos e tornou o primeiro presidente brasileiro a visitara África e os vizinhos Colômbia e Venezuela. Na época, o Brasil assinou o Acordo Tripartite com Paraguai e Argentina sobre a Usina de Itaipu, razão de tensão nos anos anteriores. Para R icu pero, ques e diz“suspeito” par afalar de Guerreiro por ter trabalha doco mele e admirá-lo, o feito mais notável da diplomaciado período foi aposição durante a Gu erradas Malvinas, em 1982.

RANCORES LATINOS

Na época, grande pressão interna impelia o Brasil a apoiar o lado britânico depois de os argentinos iniciarem uma ofensiva militar para tomar o controle das ilhas. Em mensagem a Figueiredo, Guerreiro o previne, no entanto, que “os rancores latino americanos, quando surgem, demoram a desaparecer ”. A Itamaraty seria reconhecera legitimidade do pleito argentino, mas condenara ação militar. O Brasil se recusaria a permitir que aviões militares britânicos usassem seu território como base e alertaria Reagan, que apoiava Margaret Thatcher, dos perigos de uma solução que humilhasse a Argentina.

“No momento, o Brasil é praticamente o único país a manter relações regulares coma Argentina e aG rã-Bretanha ”, escreveu Guerreiro. Nos dez anos seguintes, mesmo depois da guerra precipitar aquedada ditadura na Argentina, o Brasil representaria os interesses de Buenos Aires em Londres, até a normalização das relações entre os dois países.

—Guerreiro fez isso em um governo anticomunista, mais até do que o atual, simpático aos EUA, mas tinha força de caráter para resistir apressões — disse Ricupero. — O caso mostra que o Brasil não tem muito poder, mas pode definira sua política externa segundo seus interesses.