Correio braziliense, n. 20494, 01/07/2019. Economia, p. 6

 

A desigualdade persiste na capital

Augusto Fernandes

Ingrid Soares

01/07/2019

 

 

No Distrito Federal, a principal consequência dos altos e baixos vividos pela moeda nas duas décadas e meia de existência é a diferença salarial entre a elite do funcionalismo público e a parcela mais pobre da população

É sentado em uma cadeira de plástico atrás do balcão que João Batista, 58 anos, reflete sobre as pouco mais de duas décadas que se passaram desde que ele ergueu o estabelecimento, comprado ainda em 1994 para fundar o primeiro mercado da região que tempos depois viria a ser a Cidade Estrutural. Fundado quatro meses depois da implementação do real, o comércio parece ter caído em um limbo durante esse período. O letreiro quase totalmente apagado na porta de entrada e a caixa registradora com a tecnologia ainda daquele ano são apenas alguns detalhes de que o mercado carrega vestígios de uma época em que todo o país acreditava ser possível construir um futuro melhor, graças à nova moeda.

“Mas eu não consegui, pelo visto. Montei este mercado para poder sustentar minha esposa e os três filhos à época, e até que consegui por algum tempo. Levantava às 4 horas da manhã para buscar pão em Ceilândia ou em Taguatinga e trazia para revender aqui. Todo mundo comprava no Mercadinho Ceará. Era uma correria sofrida, mas era bom. O problema é que, em determinado momento, as coisas mudaram. O movimento diminuiu por conta da chegada dos grandes mercados e não há nada que eu possa fazer para mudar isso. Basicamente, pago para trabalhar agora”, constata.

Em um outro lugar, a mais de 40 quilômetros dali, em Planaltina, vive Tatiana de Oliveira. Aos 29 anos, ela é mãe de cinco filhos. Já trabalhou em lavouras, reciclagem e também como empregada doméstica. Mineira de São Francisco, chegou há três meses no Distrito Federal em busca de uma vida melhor. Mas não tem com quem deixar as crianças e, por isso, está há pelo menos cinco anos desempregada. “A gente sempre passa aperto. Falta alimento direto. Carne, é só uma vez no mês. Essa semana mesmo faltou feijão. Tem dias que falta arroz. Às vezes, a gente recebe doações da igreja. É o que ajuda”, explica.

Vinte e cinco anos após a criação da moeda mais longeva da história do Brasil, a desigualdade social segue como um dos principais retratos na capital do país e nas cidades ao redor dela. Apesar da pequena extensão territorial, de aproximadamente 5,8 mil quilômetros quadrados — a menor entre as 27 unidades da Federação —, o Distrito Federal é a casa tanto de pessoas que ganham R$ 16 mil por mês quanto para quem sobrevive à base de rendimentos que não chegam nem ao valor de um salário mínimo: dos 2.881.854 de habitantes em Brasília, de acordo com a Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), 1.580.290 são pessoas de média-baixa ou baixa renda, enquanto 1.301.564 estão em lares de famílias de média-alta ou alta renda.

Não por outra razão, o DF tem um dos maiores índices do coeficiente de Gini do país, parâmetro usado para medir a desigualdade de distribuição de renda. Segundo os números mais recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2017, o marcador para o DF foi de 0,602 — quanto mais próximo de um, maior a desigualdade. Apenas Amazonas, com 0,604, é mais desigual. Em determinadas regiões administrativas, a diferença na renda domiciliar é de quase 13 vezes. Enquanto uma família na Cidade Estrutural passa o mês com uma média de aproximadamente R$ 1,8 mil, uma do Lago Sul tem proventos mensais de quase R$ 22 mil, por exemplo.

Futuro incerto

Professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Piscitelli diz que a desigualdade no Distrito Federal é um problema crônico. “Lugares com uma grande porcentagem de servidores públicos, e especialmente Brasília, por ser sede da administração federal do país, tendem a ter uma disparidade de renda maior. Ao passo que temos as pessoas mais bem preparadas dentro do setor público, contamos com uma iniciativa privada que oferece baixas remunerações e que não é qualificada. Isso acentua a diferença de quem ganha mais e quem ganha menos”, analisa.

A acentuada diferença de renda, constata o professor, é um entrave para o desenvolvimento econômico do DF. Prova disso é que, em cada um dos últimos quatro anos, a economia local não cresceu mais do que 1%, e até registrou resultados negativos em duas oportunidades. “A situação se deteriorou profundamente. O DF, assim como o país inteiro, não consegue se recuperar dessa recessão. O pior é que, a curto prazo, não há perspectivas para uma melhora da situação. As condições do mercado laboral se modificaram muito, e para pior. Hoje, as relações de trabalho são precárias”, frisa.

Dessa forma, é difícil projetar um futuro positivo a curto prazo. “Dependemos da melhoria nas condições da economia brasileira como um todo. Temos de criar métodos para dispersar os mecanismos da atividade produtiva, o que poderia nos impulsionar a resultados positivos. Entretanto, não vislumbramos isso atualmente”, alerta.

Tristeza

João Batista diz que “sente na pele a desigualdade”. “Vim de Fortaleza para Brasília tentar melhores condições. Deixei de terminar o ensino médio para poder trabalhar. Até consegui ser frentista em um posto de gasolina, mas fui demitido com pouco tempo. Depois disso, construí o mercado. Mas sempre tentaram impedir o nosso crescimento. A polícia e o governo, por exemplo, não deixavam que os caminhões com mercadorias entrassem na cidade para distribuir os produtos. Isso atrapalhava o nosso lucro”, lembra. Hoje, o Mercadinho Ceará quase não tem funcionários. O açougue e o sacolão não funcionam mais, apesar de os frigoríficos e as prateleiras de verduras ainda estarem lá. “Ganho o suficiente só para pagar água e luz. Tem horas que dá vontade de fechar ou vender isso aqui. Trabalhar já não vale mais a pena”, completa.

Com Tatiana, não é diferente. Enquanto os filhos mais velhos dela vão à escola, a mulher se divide para cuidar dos menores, que ainda não estudam: Miguel, 5, Kaleb, 6, e Deivid, de apenas 8 meses. Junto ao marido e ao cachorrinho de estimação, ela compartilha três cômodos, ainda mal-acabados. Em um deles, quatro crianças se dividem entre dois colchões de solteiro para dormir. Além disso, a família tem poucos móveis, encontrados no lixo ou doados. Comida, quando há, é feita na área externa da casa, em um fogão de lenha improvisado.

A única renda da família vem do marido de Tatiana, que recebe cerca de R$ 1,2 mil pelo trabalho de servente de pedreiro que conseguiu há pouco tempo. Contudo, o dinheiro é quase todo destinado ao aluguel e às contas de água e luz. Pouco sobra para as compras do mês. Tanto é que os garotos não veem fruta, iogurte ou biscoito doce há dias. Resta, apenas, o prato preferido de Kaleb. “Miojo”, revela o menino.

Os termômetros que Tatiana utiliza para explicar que as coisas ficaram mais caras são o pão e o feijão. “Antes, com R$ 5, conseguia comprar duas sacolas de pão. Agora, vem pouco. Um para cada um, e olhe lá. Hoje, nem o feijão dá pra comprar com R$ 5, porque está mais de R$ 8, o pacote. A sardinha também aumentou. E até o miojo, que é o que a gente mais consome, subiu de 60 centavos para R$ 2”, compara. Apesar disso, ela não perde as esperanças de um futuro melhor. “O meu sonho é trabalhar de carteira assinada. Assim, poderei colocar todos os meus filhos na escola”, conta.

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Drama social

01/07/2019

 

 

 

 

A desigualdade de renda, especialmente em um país de renda média-baixa, como é o caso do Brasil, é algo extremamente cruel e perigoso. Recentemente, ela tem aumentado por conta da queda da renda das pessoas mais pobres, o que é um drama social de grandes proporções. Nos últimos três anos, mais de 6 milhões de pessoas passaram a fazer parte daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza. No Brasil, são quase 55 milhões de pessoas consideradas pobres, que vivem com cerca de R$ 400 por mês, valor insuficiente para atender às necessidades mínimas de alimentação, habitação e vestuário.

No Distrito Federal, há algumas questões complementares que tornam essa desigualdade mais marcante. Em primeiro lugar, somos a unidade da Federação de maior renda per capita. Está em Brasília a elite do funcionalismo público, que recebe vencimentos muito acima da renda média do trabalhador brasileiro, bem como empresários e profissionais liberais de altos rendimentos.

Além disso, a geografia do Plano Piloto favorece a concentração espacial de pessoas muito ricas para os padrões brasileiros. As restrições à ocupação do solo no Plano fazem com que o preço das casas e dos aluguéis seja bastante elevado na região, especialmente em áreas como o Lago Sul, o que afasta as populações de renda média.

A situação na Cidade Estrutural, por exemplo, reflete de maneira mais fiel o que é a realidade brasileira. O Plano é um ponto fora da curva ou uma ilha da fantasia no meio do mar da realidade nacional. De qualquer forma, a pauperização é visível mesmo nesta ilha. Vemos o aumento de pessoas morando em barracos improvisados e em condições subumanas, o crescimento do número de pedintes e de crianças vendendo panos de prato pelas quadras comerciais à noite. Esses são sintomas preocupantes da crise e impactarão na vida das pessoas a longo prazo. São crianças e jovens que entrarão no mercado de trabalho em condições muito frágeis, tendo que se submeter a subempregos, e que podem, muitos deles, serem tragados para a criminalidade ou para os vícios, o que é um drama pessoal e social ainda maior.

Para os funcionários públicos que moram no Plano Piloto, a crise tem sido suave, quase imperceptível, mas, para os brasilienses pobres, a baixa renda e a desigualdade são dramas gigantescos. Não há civilização verdadeira quando existe tanta pobreza e tanta desigualdade como hoje no Brasil.

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O resultado: desemprego e violência

 

 

Augusto Fernandes

Ingrid Soares

01/07/2019

 

 

 

Ronaldo Gonçalves, 38 anos, se considera uma espécie de “faz-tudo” ou “pau para toda obra”. Aprendeu desde menino o valor do emprego e, por conta disso, não nega trabalho. É vidraceiro, eletricista, pedreiro e o que mais lhe pedirem para fazer. “Já trabalhei de tudo nessa vida”, resume. No entanto, há três anos ele não sabe o que é ter a carteira assinada. Durante esse tempo, sustentar a família virou um desafio. O seu refúgio, por enquanto, tem sido uma mercearia que ele montou em frente de casa, no Sol Nascente, em Ceilândia.

“Mas, ainda assim, não é o que eu quero. Os meus dois filhos estão crescendo e eu tenho que proporcionar melhores condições para que eles possam ter um bom estudo e, consequentemente, um futuro tranquilo. O meu medo é que, com tanto tempo fora do mercado de trabalho, eu não consiga ser inserido novamente. Além de eu estar desatualizado, não vejo tantas vagas disponíveis”, confessa.

O temor de Ronaldo é uma cena comum em Brasília. A desigualdade de renda não é o único contraste existente no Distrito Federal. Ao mesmo tempo em que a unidade da Federação tem a renda por habitante e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais altos do país, preocupa a evolução do desemprego. Desde 1994, a taxa de desocupação cresceu 195,5%, com a quantidade de pessoas sem emprego passando de 112 mil para 331 mil. O percentual de criação de postos de trabalho foi bem menor, tendo subido 106,7% de 1994 até maio deste ano — antes, eram 665 mil empregados; agora, 1,375 milhão.

“É difícil encontrar emprego hoje e eu não percebo o governo fazendo algo para melhorar essa situação. Pelo contrário, os políticos só criam barreiras para que os empresários possam investir e, com isso, abrir mais oportunidades. Enquanto isso, quem sofre é a população de baixa renda, como eu. Me sinto abandonado. Excluído da sociedade”, lamenta Ronaldo.

Gerente de pesquisas socioeconômicas da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), Jusçanio Umbelino reitera o pensamento de Ronaldo. Ele reconhece que Brasília precisa de uma reestruturação dos setores da economia. “É necessário que os setores produtivo e privado sejam mais preponderantes e participativos, para diminuir a dependência do setor público”, comenta.

O aumento nos índices de desemprego, de acordo com Jusçanio, se deve ao fato de o mercado de trabalho de Brasília ser mais concentrado no Plano Piloto e ter de suprir não só a população residente no DF, mas também a demanda de municípios de estados vizinhos, onde o custo de vida é difícil. “Temos que identificar as potencialidades de cada região administrativa para descentralizar a atividade econômica brasiliense. É fundamental pensarmos em uma ação conjunta e integrada se quisermos garantir o desenvolvimento regional e metropolitano”, destaca.

Desalento

Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), Alexandre Andrada frisa que “o desemprego é uma tragédia familiar e social”. “É papel da população procurar medidas e políticas para minorar esse problema econômico e social. Os custos do desemprego para o bem-estar emocional e a autoestima das pessoas é enorme”, pontua.

O baque é grande para Maria Helena dos Santos, 49. Apesar de morar em um condomínio chamado Mansões do Amanhecer, ela diz que a vida de riquezas está longe da realidade da família. A cada dia, ela enfrenta um novo desafio para garantir a sobrevivência. Sem ocupação, resta a informalidade: a mulher recolhe recicláveis para vender em Planaltina. Com isso, consegue uma renda de cerca de R$ 100 mensais. A maior parte do dinheiro da família vem do auxílio-doença que o marido, deficiente, recebe.

Segundo ela, desde que o real entrou em vigor, as condições socioeconômicas da família dela só regrediram. Hoje, com a falta de um emprego que pague pelo menos o salário mínimo, fica difícil até para comprar os mantimentos de casa. “Compro muxiba porque é mais barato e o ensopado rende. Mas falta coisa em casa. Chocolate, carne e iogurte, por exemplo, não compro mais. Leite, ainda me dou ao luxo. Mas, hoje, está bastante complicado. Parece que o nosso dinheiro rende cada vez menos”, comenta.

As últimas vezes que Maria Helena teve um emprego formal foi como auxiliar de escritório e de serviços gerais, há mais de 25 anos. Na época, ainda recebia em cruzeiros. Decepcionada com a situação atual, gostaria de voltar aos velhos tempo. Assim, acredita que teria como proporcionar uma vida mais justa ao marido e aos quatro filhos, de 8, 12, 15 e 19 anos. “Comparando com o real, acho que o cruzeiro tinha mais valor. Dava para comprar muito mais coisas e garantir o gás, a alimentação, a luz. Tudo era mais barato”.

Discussão sobre o real

Como parte do programa Correio Debate, a moeda mais longeva da história do país será tema hoje: 25 Anos do Real — Os desafios para o Brasil. O evento, no auditório do jornal, será aberto com um vídeo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e terá importantes convidados, entre eles, Pérsio Arida, Roberto Padovani, Rodrigo Spada, Carlos Augusto Costa, Tony Volpon e Gustavo Loyola. As discussões ocorrem entre 14h e 19h.

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Jovens são os mais afetados

01/07/2019

 

 

 

Com o mercado de trabalho reagindo aquém do desejado, a desocupação atrapalha não só o desenvolvimento econômico. Segundo Jusçanio Umbelino, da Codeplan, o alto desemprego contribui diretamente para a evolução dos marcadores de violência. “Certamente, tem correlação. A crise foi muito rápida e impactou especialmente a população mais jovem da sociedade. A consequência da inatividade é que muitos se desvirtuam para outros caminhos e encontram na criminalidade uma série de atrativos que possam suprir as suas necessidades”, explica.

Apesar de ainda faltar praticamente um ano e meio para o fim desta década, Brasília viu as estatísticas criminais sofrerem alta de 7,2% em comparação aos primeiros 10 anos do século. Entre 2001 e 2010, foram registrados 398.986 crimes contra o patrimônio (furto em veículo, roubo de veículo, roubo a transeunte, roubo em coletivo, roubo em comércio) e contra a vida (homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte). De 2011 até hoje, o número já alcança a marca de 427.895.

“Você não pode perder a atenção em momento algum. Fica até complicado sair de casa. Em qualquer lugar que vamos, estamos em risco”, conta o comerciante Carlos Antônio de Oliveira, 55. Quase sempre que está na loja de temperos naturais que abriu há 15 anos, o morador da Cidade Estrutural presencia cenas de violência. “É complicado. Toda vez estamos diante de algum assalto. Quando a minha mulher vai abrir a loja de manhã, peço que ela tenha muito cuidado. Não podemos dar bobeira”, conta.

Ineficiência

Apesar de toda a cautela, Carlos Antônio não conseguiu se safar da onda de criminalidade do Distrito Federal. O pequeno comércio da família já foi alvo de roubos em mais de uma ocasião. O pior de tudo, diz o comerciante, é ver um serviço de segurança pública ineficiente. “Todo mundo aqui reclama, sabe? Ligamos para a polícia, mas tem vezes que o nosso chamado não adianta em nada. Nos respondem que não há viaturas suficientes e fica por isso mesmo. Como podemos viver em uma realidade como essa?”, desabafa.