Correio braziliense, n. 20498, 05/07/2019. Esportes, p. 16

 

E Cabral descobriu a lama olímpica

05/07/2019

 

 

Rio-2016 » Em depoimento à Justiça Federal, ex-governador do Rio de Janeiro confessa o pagamento milionário de propina por nove votos do Comitê Internacional que garantiram a realização dos Jogos na capital fluminense

Condenado a 198 anos de reclusão e preso desde 2016, o ex-governador Sérgio Cabral disse ontem, em depoimento ao juiz federal Marcelo Bretas, responsável pelos processos da operação Lava-Jato na primeira instância do Rio, que pagou US$ 2 milhões (cerca de R$ 7,67 milhões, pelo câmbio atualizado) pelos votos de nove membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) para assegurar a escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016. A negociação, segundo Cabral, foi feita com o senegalês Lamine Diack, que presidiu a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) de 1999 a 2015. Um dos votos comprados seria do ex-nadador russo Alexander Popov, vencedor de quatro medalhas de ouro nos Jogos de 1992 e 1996.

Cabral figura entre os réus em um processo na 7ª Vara Federal Criminal do Rio que foi aberto com base em indícios de compra de votos para eleger o Rio como sede dos Jogos Olímpicos. As investigações começaram a partir da Operação Unfair Play, que levou à prisão, em outubro de 2017, o presidente do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e do Comitê Rio-2016, Carlos Arthur Nuzman, e o ex-diretor de marketing do COB e de comunicação e marketing do Comitê Rio-2016, Leonardo Gryner.

O evento para a escolha da sede da Olimpíada de 2016 foi realizado em Copenhague, na Dinamarca, em 2 de outubro de 2009, com votação em três turnos. No primeiro, a cidade de Madri recebeu 28 votos, o Rio, 26, e Tóquio, 22. Chicago teve 18, ficou na última colocação e foi eliminado. Hipoteticamente, sem os nove votos comprados, o Rio ficaria apenas com 17, em último lugar e fora do pleito.

No segundo turno, o Rio teve 46 votos, Madri, 29, e Tóquio, 20 — a capital japonesa foi eliminada. Na última etapa, o Rio teve 66 votos, enquanto Madri, 32. Os nove votos só fizeram diferença, portanto, no primeiro turno, evitando a eliminação da capital fluminense.

Além de Nuzman e de Gryner, outro réu no mesmo processo é o empresário Arthur Soares Filho, conhecido como “Rei Arthur”, hoje foragido e que foi beneficiário de contratos milionários com o governo do Rio nas administrações de Cabral. Segundo o depoimento do ex-governador, o empresário foi o responsável por fazer o depósito de US$ 2 milhões no exterior, a favor de Lamine Diack.

Em depoimentos anteriores, Cabral havia rejeitado os indícios de compra de votos. No entanto, em dezembro passado, mudou de advogado e, a partir de fevereiro, passou a admitir outras acusações de que foi alvo. A defesa pediu ao juiz Marcelo Bretas o depoimento de ontem, especificamente para tratar da compra de votos.

Frase

“Nuzman vira pra mim e fala: Sérgio, quero te abrir que o presidente da IAAF, Lamine Diack, é uma pessoa que se abre para vantagens indevidas. Ele pode garantir cinco ou seis votos. Ele quer, em troca, US$ 1,5 milhão”

Sérgio Cabral, ex-governador do Rio

US$ 2 milhões

Valor que teria sido pago pelos votos de nove membros do Comitê Olímpico Internacional

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Ex-presidente do COB como intermediário

05/07/2019

 

 

 

 

O ex-governador relatou ao juiz que, em agosto de 2009, dois meses antes da votação em Copenhague, foi procurado por Nuzman, que pediu um “encontro urgente” após um evento esportivo em Roma. “Nuzman vira pra mim e fala: o presidente da IAAF, Lamine Diack, é uma pessoa que se abre para vantagens indevidas. Ele pode garantir cinco ou seis votos”, contou o ex-governador do Rio.

Cabral disse que, na sequência, quis saber de Nuzman de onde viriam os votos e qual era a garantia de que eles seriam efetivamente recebidos. Segundo o ex-governador, Nuzman respondeu que os votos viriam de membros africanos do COI e também de representantes do atletismo. Cabral teria, então, autorizado Nuzman a dar prosseguimento à negociação.

“Eu chamei o Arthur Soares e falei para ele da necessidade de conseguir o dinheiro para os votos. Isso foi debitado do crédito que eu tinha com ele. Fui eu que paguei. Eu dei o telefone do Léo (Leonardo Gryner, ex-diretor de operações da Rio 2016) e eles acertaram com esse Papa Diack, filho de Lamine Diack”, contou o ex-governador.

Questionado se algum político sabia da compra de votos, Cabral citou o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

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Políticos citados negam participação

05/07/2019

 

 

 

O advogado de Nuzman, João Francisco Neto, disse que o depoimento de Cabral favoreceu seu cliente. “O depoimento do ex-governador Sérgio Cabral foi muito positivo para a defesa do senhor Nuzman. Ele falou de uma suposta compra de votos, que é uma alegação que ele faz talvez por estar em uma situação de condenado a mais de 200 anos de prisão. Cada processo ele tem que dizer alguma coisa. Ele resolveu dizer aquilo que ele não pode provar: que houve uma suposta intermediação na compra de votos”, disse o advogado.

A defesa de Lula também rejeitou as acusações: “É inverídica e sem provas a referência feita ao ex-presidente Lula pelo ex-governador Sérgio Cabral”.

O ex-prefeito Eduardo Paes se defendeu: “não só não participei como não sabia. E não me contaram porque sabem que eu não concordaria. Simples assim”. A defesa do empresário Arthur Soares também negou a versão de Cabral.

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Apoio internacional nas investigações

05/07/2019

 

 

 

A investigação brasileira sobre compra de votos para a Olimpíada foi motivada por um pedido feito no fim de 2016 pelo Ministério Público francês, que, durante investigação sobre doping no atletismo, encontrou indícios de corrupção na candidatura do Rio.

O depoimento de um ex-atleta olímpico brasileiro foi importante para a investigação. O ex-piloto de bobsled Eric Walther Maleson deu informações sobre a suposta compra de votos africanos.

Ele disse que, em julho de 2009, o secretário especial da prefeitura para a Olimpíada, Ruy Cesar Miranda Reis, foi para a África com Carlos Arthur Nuzman apresentar a candidatura do Rio. Meses depois, segundo Maleson, o secretário deu a entender que o dinheiro havia sido pago. O ex-prefeito Eduardo Paes não foi citado.

Uma reunião em Abuja (Nigéria), em agosto de 2009, foi apontada como uma das ocasiões em que teria ocorrido pagamento de propinas. Mas os votos africanos representavam cerca de 10% do total do colégio eleitoral do COI e, de acordo com informações coletadas até então, as suspeitas apontam que a estratégia não se limitou à África.

Em setembro de 2017, as procuradorias do Brasil e da França realizaram operação de busca e apreensão na casa de Carlos Arthur Nuzman, onde foram apreendidos documentos e R$ 500 mil em moedas de cinco países. Intimado a depor, Nuzman passou quase seis horas em silêncio na Polícia Federal.