Título: Após 8 anos, cotistas são 10,5% dos alunos
Autor: Pompeu, Ana; Alcântara, Manoela
Fonte: Correio Braziliense, 20/10/2012, Cidades, p. 32

Balanço revela que, antes do início da reserva de vagas, em 2002, apenas 2% dos estudantes eram afrodescendentes na Universidade de Brasília (UnB). Dos 6.403 que entraram na instituição por meio do sistema, 1.239 concluíram a graduação e 3.459 estão matriculados

Em oito anos de funcionamento do Sistema de Cotas para Negros na Universidade de Brasília, 6.403 pessoas ingressaram na instituição por meio da reserva de vagas. Do total, 1.239 concluíram a graduação e aumentaram a diversidade étnica nos câmpus. No período, o número de afrodescendentes na UnB aumentou de 2% para 10,5%. A meta inicial era que os negros fossem pelo menos 20% do quadro discente em 2014, quando o programa completará 10 anos e a sua continuidade será avaliada pelo Conselho Universitário (Consuni).

No momento em que o país se prepara para implementar a Lei de Cotas Sociais, a UnB também usa a ocasião como oportunidade de refletir a experiência de oito anos de vigência das cotas raciais. Em 2004, a instituição foi a primeira federal do Brasil a separar vagas para os negros. Naquele ano, os brancos representavam 98% dos estudantes. Com a previsão de reserva crescente de oportunidades para alunos da escola pública, pretos, pardos, indígenas e de baixa renda, ainda existem argumentos de que a qualidade do ensino superior nas instituições federais de ensino pode cair.

O mesmo era discutido quando as cotas para negros foram implementadas na UnB. Porém, isso não ocorreu. O rendimento dos cotistas é similar ao dos não cotistas dentro da sala de aula. Isso pode ser percebido por meio de pesquisa realizada por estudiosos do assunto ou mesmo pela percepção dos próprios estudantes. “Não há diferença significativa entre cotistas e não cotistas”, afirma o decano de Ensino de Graduação, José Américo Soares. A avaliação geral do professor é positiva em relação à política de reserva.

Apesar da universidade oferecer 20% das vagas a negros e pardos, esse grupo não atinge tal percentual. “Nós facilitamos o acesso, mas temos que nos preocupar também com a manutenção desses estudantes na graduação. Garantir a permanência deles ainda é um desafio”, admite o decano. Segundo Soares, os motivos de evasão dos cotistas, geralmente, são os mesmos daqueles que entraram pelo sistema universal. Eles desistem do curso por perceberem que fizeram a opção errada ou não conseguem se manter na faculdade por causa de dificuldades financeiras.

Kendy Neris, 26 anos, está no 7° semestre de ciências sociais. Apesar de considerar a estadia na universidade cara, ela não precisou pensar em trancar o curso. “Tenho bolsa permanência, como mais barato no RU (Restaurante Universitário), tenho desconto em livro da universidade. Se não tivesse isso, seria mais difícil ficar”, conta. Kendy é da primeira geração da família que faz ensino superior. Para ela, as vantagens do programa vão além disso.

“O sistema de cotas também serve para eu entender a minha identidade. Depois que entrei para a UnB, consegui me aceitar com a minha cor e o meu cabelo. Passei a pesquisar e a correr atrás para entender a temática racial”, diz. Para ela, a grande vitória das cotas é a troca de experiências. Os não cotistas também passam a tentar entender a realidade dos colegas. Kendy pretende ser professora e trabalhar com a autoestima dos alunos de ensino médio.

O diretor do Centro de Convivência Negra da UnB, Ivair Augusto Alves dos Santos, acreditam que a conquista da política de reserva de vagas é maior do que ele imaginava na época da implantação. “Mudou tanto o sistema de garantia de acesso aos negros como alimentou o debate das mudanças necessárias na qualidade do ensino médio”, avalia.

Mesmo assim, consolidar o programa não foi simples. “Nós tivemos de lutar dentro e fora da UnB, diariamente, para que as pessoas entendessem a necessidade do sistema de cotas”, afirma o diretor. O processo que resultou na decisão a favor das cotas em 2004 é longo. Ivair atuava na área de políticas afirmativas quando, em 1995, o Brasil começou a pensar no assunto. O movimento negro encabeçou o debate e passou a lutar pela implementação das cotas. O câmpus da UnB serviu de sede para o primeiro seminário que discutiu o assunto em 1996. Dezesseis anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional o sistema de cotas para negros na instituição brasiliense.

Avaliação Ao ser implementada, em 2004, a política de cotas para negros na UnB reservava vagas somente pelo critério étnico, independentemente do histórico escolar. A nova lei das cotas sociais prevê a inclusão racial, mas com o recorte para o colégio público. Isso não contempla o argumento de que o racismo atinge todas as classes sociais. Neste primeiro ano de implementação da Lei Federal nº 12.711, serão destinados 12,5% para os que se enquadram no perfil determinado por ela. A UnB decidiu ainda manter os 20% para os afrodescendentes. Porém, em 2014, esta política será revista pelo Conselho Universitário (Consuni) e pode ter o percentual reduzido ou ser extinta.

A indefinição preocupa integrantes do movimento negro e professores apoiadores da causa. Para eles, o recorte social não exclui a necessidade de inclusão étnica. O coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, Nelson Inocêncio, ressalta que a lei sancionada pela presidente Dilma Rousseff também toca em uma questão séria, que é o fosso existente entre a educação pública e privada. No entanto, considera que a questão racial não está condicionada à socioeconômica.

Para ele, na transição de um sistema para outro, é importante que a instituição não perca de vista o foco racial das ações afirmativas. “Até 2014, atuaremos com os dois tipos de cota. O que não pode ocorrer é a perda de uma definição que inclui toda a população negra, sem viés econômico ou de currículo escolar”, analisou. Só assim ele considera que desvantagens históricas serão resolvidas. “As políticas de inclusão se direcionam hoje a todos os grupos em condição de vulnerabilidade e que tenham sofrido desvantagens históricas.”

O Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) da UnB decidiu manter os 20% para negros no vestibular tradicional até 2014 porque estava prevista uma avaliação dos benefícios da implantação no prazo de 10 anos. Com isso, 32,5% das oportunidades da instituição foram reservadas a algum tipo de cota. Com o arredondamento para mais, previsto pela legislação, esse número aumentou para 34,5%. Sendo 14,5% das cotas sociais para vestibular e Programa de Avaliação Seriada (PAS) e os outros 20% para o sistema existente desde 2004.

Depoimentos

"Mudança grande para o país" “Entrei pelo sistema de cotas na segunda turma de 2005. Isso abriu um leque muito grande de informações que eu não tinha. Sou o único dos meus irmãos a ter cursado uma universidade pública. Vivenciei todo o ponto de ebulição do processo, estudei isso no meu curso e, hoje, sou consultor do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em políticas voltadas para a área. Sempre quis fugir da universidade particular. Do meu círculo de amigos próximos, sempre tive mais afinidade com os de escolas públicas. Cheguei a estudar na rede privada, mas sofri discriminação. Cheguei a ouvir que era um preto burro, me chamavam de carvão. Quando fui para o Elefante Branco, no 3º ano do ensino médio, vi discussões que ainda não conhecia efervescerem.

De fato, o ensino da escola privada era bom, mas na rede pública a discussão política era mais rica, o debate sobre as cotas era presente. Não tive isso nas escolas privadas. Lá, o tratamento era diferenciado. De uma turma de 30 alunos, três eram negros. Na rede pública, era o inverso. A entrada na UnB não foi fácil. As pessoas diziam que o rendimento ia diminuir, mas isso não ocorreu. Hoje, a nova lei amplia o acesso por meio das cotas para todo o Brasil. Isso é uma conquista . O investimento na educação e o aumento da escolaridade dos negros reduzirão também o nível de assassinatos, a população carcerária. É uma mudança grande para o país.”

Rafael Moreira Serra da Silva, 27 anos, formado em ciências sociais e antropologia pela UnB, é aluno do mestrado de antropologia social na Universidad Nacional de San Martín (Argentina)

“Meu curso é de maioria branca” “Optei pelo sistema de cotas pelo simples motivo de ser negro. Passei no 2° vestibular de 2006 da UnB, em primeiro lugar para o meu curso e em segundo lugar geral. Sempre me questionavam que eu não precisava me inscrever para as cotas, se tinha nota e vinha de escola privada. Mas a função dessa política, para mim, não é tão financeira como muita gente argumenta. É reduzir a desigualdade histórica contra o negro. Como a maior parte dos negros são pobres, as pessoas acabam relacionando as duas coisas. Mesmo assim, não deixo de ser negro por ser de uma condição financeira melhor. O preconceito continua me atingindo. No primeiro semestre, recebi uma bronca de uma professora porque ela havia tido um problema com outro negro. No 5° semestre, nós tivemos que começar a usar branco. Fui com um amigo a um mercado. Enquanto uma pessoa me parou perguntando se eu trabalhava no lugar, outra esbarrou no meu colega, branco e com olhos claros, e pediu desculpas ao ‘doutor’. As pessoas não estão acostumadas. Meu curso é de maioria branca. O interessante das cotas é que elas passam a ver os negros de forma mais natural e nem percebem que estão mudando de opinião. Mas existe o problema das fraudes, que precisa ser revisto. Minha turma tinha 36 alunos. Desses, sete cotistas. Na minha avaliação, apenas eu e uma colega éramos realmente negros. Dois deles contam abertamente que fizeram bronzeamento artificial, passaram maquiagem e até um batom para que a boca parecesse mais larga.”

Lucas Mendes, 24 anos, formado em medicina no 1° semestre de 2012. Estuda para residência em psiquiatria.