Correio braziliense, n. 20500, 07/07/2019. Economia, p. 8

 

Ganhos sociais retrocedem

Hamilton Ferrari

Marina Torres

Gabriela Tunes

07/07/2019

 

 

25 anos do real » Depois do plano de 1994, a população vulnerável saiu de 34,5% para 28,4% em um ano e meio. Crescimento, política de salário mínimo e proteção social derrubaram índice para 8,38% em 2014. Porém, crise faz a pobreza voltar

Nenhum imposto é pior para os desfavorecidos do que a inflação alta. Um dos principais ganhos do Plano Real foi reduzir a pobreza ao combater a hiperinflação. E os efeitos foram constatados rapidamente. Um ano e meio depois da implantação do real, em julho de 1994, o total de brasileiros em situação de vulnerabilidade, que somava 34,5%, em 1993, caiu para 28,4%, em 1996.

A manutenção da estabilidade de preços, a criação de empregos, a adoção de políticas de valorização do salário mínimo e de programas sociais, associadas ao crescimento econômico, derrubaram a pobreza até meados da década de 2010. O menor índice foi em 2014, quando 8,38% da população brasileira foi classificada como vulnerável, de acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV). Nos últimos anos, porém, parte das conquistas retrocede. O nível de desigualdade social voltou a subir e continua piorando. Em 2018, 10,95% da população estava em situação de extrema pobreza.

O Plano Real criou as condições necessárias para a estabilização da economia e potencializou o consumo, aumentando o poder de compra da população. As pessoas passaram a adquirir produtos considerados caros, como iogurte, por exemplo, que virou uma espécie de símbolo do sucesso do plano na época. Até então, a maioria das famílias brasileiras não tinha sobra no orçamento para gastar com supérfluos.

A merendeira Joana D’Arc Dantas, hoje com 55 anos, conta que, na época do cruzeiro, tudo que era desnecessário era deixado de lado. “Era uma loucura, o preço mudava todo dia e comprávamos só o básico. Não dava para luxos como sapatos, por exemplo. Hoje em dia, eu sei quanto preciso para gastar com as compras do mês”, diz. Joana D’Arc lembra que morava de aluguel e só depois do Plano Real conseguiu comprar a casa própria.

Em junho de 1994, o salário mínimo era de CR$ 147,6 mil (cruzeiros reais). No mês seguinte, quando o Plano Real foi implementado, o valor foi convertido para R$ 64,79. Em setembro, subiu para R$ 70 e, em abril de 1995, para R$ 100, um aumento de 43%. Os valores podem parecer baixos atualmente, mas, na época, foram fundamentais para a expansão da demanda. Até 1994, as classes menos favorecidas se protegiam da inflação estocando alimentos. Ao receberem o salário, as famílias corriam para os supermercados, já que o poder de compra diminuía a cada hora, por conta das frenéticas remarcações. Havia produtos cujos preços chegavam a subir três vezes ou mais em um único dia.

Dentro dos supermercados, não era incomum o consumidor correr para retirar o produto da prateleira antes de o funcionário chegar para remarcar o preço. Como o dinheiro valia pouco, as famílias preferiam manter mercadorias estocadas do que guardar as cédulas, que desvalorizavam rápido no bolso.

Desigualdade

Maria de Fátima Lima, 52, sentia na pele por não poder estocar. Faxineira, trabalhava em casas de família. “Via que tinham geladeira e freezer para guardar alimentos, mas eu não tinha. Fazia comida no fogão à lenha. Minha cama e meus sapatos eram doações”, recorda. Hoje, se orgulha de poder comprar chocolate para os netos. “As coisas melhoraram muito nos últimos 25 anos. Lamento não ter tido a chance de realizar os desejos de consumo dos meus filhos na época, como faço com os netos”, diz.

Tudo isso virou história depois do Plano Real. No entanto, parte das conquistas obtidas após a adoção da moeda que debelou a inflação se perdeu com a crise econômica, iniciada em 2014. O número de miseráveis voltou a subir, ampliando a desigualdade. Só em 2015, aumentou 19,3%, incluindo mais 3,6 milhões de pessoas na pobreza, segundo a FGV. No ano passado, a instituição calculou que mais de 23 milhões de brasileiros estavam nessa condição.

No primeiro trimestre de 2019, o índice Gini chegou a 0,6257, o maior patamar do medidor de desigualdade da série histórica da FGV, iniciada em 2012, quando ficou em 0,5815 no primeiro trimestre. O indicador mede o grau de concentração de renda e varia de zero a um, sendo que o zero representa igualdade. Portanto, quanto mais próximo de um, mais desigual é a sociedade. Antes do Plano Real, em 1993, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird) calculou em 0,60 o índice de Gini no Brasil.

O pesquisador Marcelo Neri, da FGV Social, explica que, a partir de 2014, o país sofreu uma grande recessão, seguida de uma lenta retomada da economia. “O social começou a regredir. Depois de 30 anos de queda, a mortalidade infantil voltou a aumentar em 2018. Então, não é só o econômico que está em jogo. Por isso, a necessidade de o Brasil voltar a crescer. Estamos em uma encruzilhada em que precisamos de ajustes econômicos, sem esquecer o social”, afirma.

“O índice que mede a pobreza caiu consideravelmente. Logo, pensamos que o grande motor foi o Bolsa Família e os programas de proteção social, expandidos no período. Mas o crescimento econômico e a criação de empregos, além da política de salário mínimo, foram fundamentais”, explica Rafael Osório, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). De acordo com o especialista, desigualdade e pobreza são fenômenos relacionados no Brasil, por conta da baixa renda da maioria da população. “Se tivéssemos os níveis do Uruguai, por exemplo, praticamente não teríamos pobreza extrema. Seria algo totalmente residual”, compara.

Salto e abandono

Tanto que, para quem tinha bons rendimentos, o real representou um salto na qualidade de vida. A servidora pública Maria Regina Ferreira, 53, foi fazer mestrado em direito na Universidade de Kent, Inglaterra, em 1995. A libra valia em torno de R$ 1,40, quatro vezes menos do que hoje. Mesmo com boas condições financeiras, reconhece que, se não fosse o Plano Real, a vida seria bem mais complicada. “A moeda estabilizada me permitiu fazer planejamento. Hoje, viajamos muito mais”, conta.

Professora do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lena Lavina ressalta que a pobreza preocupa quando volta a aumentar, como atualmente. “O que nós temos visto é algo dramático. De acordo com o Banco Mundial, cujo parâmetro para incluir a pessoa na faixa de miséria é dispor de US$ 5 por dia (cerca de R$ 19 ou R$ 570 por mês), há 55 milhões de pessoas nessa condição no Brasil. É muito. Não por acaso, a desnutrição e a mortalidade infantil voltaram a preocupar pela situação insalubre em que as famílias vivem”, avalia.

Poeira e esgoto estão no caminho da casa da artesã Solange Macedo, 35. Moradora do Sol Nascente, ela busca na escola o filho Pedro, de seis anos, que calçava chinelos. “Nossa situação financeira é difícil. Não temos como gastar com lazer ou vestimenta”, explica. O marido trabalha como motorista para sustentar a família de quatro pessoas. Ela diz sentir uma sensação de abandono. Quando o assunto é saúde, a situação fica mais complicada. “É uma dificuldade tentar atendimento no hospital, não conseguir e ter que comprar medicamentos”, diz. Por conta da insalubridade do local, que não tem saneamento básico, doenças são comuns. Ela, o marido e o filho de 12 anos tiveram dengue.

Frase

"O que nós temos visto é algo dramático. Desnutrição e mortalidade infantil voltaram a preocupar”

Lena Lavina, professora de economia da UFRJ