Correio braziliense, n. 20500, 07/07/2019. Mundo, p. 12

 

A esquerda defende seu último reduto

Silvio Queiroz

07/07/2019

 

 

Mercosul » O Uruguai entra na campanha para a eleição presidencial de outubro com o governo da Frente Ampla pressionado pelo desgaste de três mandatos consecutivos, com a economia patinando e a criminalidade em alta

Três meses de campanha separam o Uruguai de uma eleição presidencial que os sócios do Mercosul — Brasil, Argentina e Paraguai — e os demais vizinhos sul-americanos terão motivos de sobra para acompanhar com a máxima atenção. Três dos candidatos definidos nas primárias partidárias do domingo passado despontam como favoritos, mas a questão que mobiliza o subcontinente é o destino do último governo de esquerda do bloco comercial. Depois de governar por 15 anos, em mandatos alternados do atual presidente, Tabaré Vázquez (duas vezes) e do celebrado José Pepe Mujica, a Frente Ampla, que sobreviveu à ditadura cívico-militar de 1973-1985 e encorpou em três décadas de democracia, chega às urnas desgastada. A expectativa é de um segundo turno desfavorável para o ex-prefeito de Montevidéu Daniel Martínez, a quem os militantes da legenda confiaram a missão.

O engenheiro, ligado ao Partido Socialista, de Tabaré, terá como principal adversário um político de estirpe do Partido Nacional, também conhecido como blanco, uma das duas legendas que dominaram o cenário uruguaio no século passado. Luis Lacalle Pou, filho do ex-presidente Luis Alberto Lacalle, se impôs nas primárias a um milionário estreante na política, simpatizante declarado do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Sua primeira tarefa será atrair, até outubro, os votos dados ao rival por um eleitorado interno considerado fluido e volátil. Martínez e a Frente Ampla largam na frente nas pesquisas para o primeiro turno, com 36% das intenções de voto. Mas, com 29%, os blancos apostam na captação natural dos eleitores de Ernesto Talvi, do Partido Colorado — a outra força política histórica do país.

Para o governista, a primeira escala da jornada foi completar a formação da chapa presidencial, e a escolha recaiu sobre a ex-vereadora da capital Graciela Villar, 60 anos, veterana da militância estudantil e sindical. “É uma companheira que conheço há muitos anos, comprometida com a causa desde a ditadura, com experiência parlamentar e um perfil que nos permitirá o vínculo com o movimento social, um laço que tem de florescer novamente”, discursou Martínez ao apresentar a vice. Coin cidência ou não, também Lacalle terá a companhia de uma mulher, Beatriz Argimón, presidente do Partido Nacional.

Estagnação

Depois de ter governado com crescimento initerrupto por 15 anos, desde 2003, a Frente Ampla carrega agora nos ombros o peso da estagnação econômica, com fechamento de empresas, desemprego e um deficit público que chega a 5% do PIB. Paralelamente, a criminalidade aumenta e a sensação de insegurança fornece munição farta para a oposição. Na avaliação do professor Juliano da Silva Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da UnB, a esquerda sul-americana paga o preço pelos próprios erros, mas também confronta uma conjuntura internacional desfavorável.

“Não é um processo apenas regional, é também na Europa e nos Estados Unidos: a eleição de Donald Trump, o Brexit, a vitória de forças conservadoras em vários países”, analisa Cortinhas, em entrevista ao Correio. Ele faz coro, no entanto, a uma das críticas mais frequentes da oposição uruguaia, que acusa os governos da Frente Ampla de terem se preocupado quase exclusivamente com o acesso dos mais pobres ao consumo.  “Sem dúvida, aumentou o ascesso à educação, mas não a uma educação de qualidade. Os avanços que era preciso fazer não foram feitos”, pondera. “A esquerda na América do Sul cometeu falhas, e essa foi a principal.”

O professor da UnB observa, no entanto, que também a Argentina terá eleições presidenciais — e, lá, o ônus da economia estagnada recairá sobre o direitista Mauricio Macri, que tentará a reeleição. “O Uruguai pode ser mais um país a fazer um movimento de sentido conservador, mas não será o desmoronamento da esquerda”, arrisca. “Uma das dificuldades da esquerda por aqui é se renovar. No Brasil, a gente ainda fala do Lula. Na Argentina, é Cristina Kirchner, que até tem chances de voltar, porque Macri também não conseguiu entregar resultados satisfatórios.”

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Duas perguntas para...

 

 

 

 

 

Juliano da Silva Cortinhas

07/07/2019

 

 

Professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da UnB

O que representa, para a esquerda sul-americana, o risco de perder o governo também no Uruguai?

A política é feita de ciclos. No começo da década de 2000, tivemos um ciclo forte da esquerda, com um panorama favorável na região para o crescimento, que resultou na criação da Unasul (União de Nações Sul-Americanas, praticamente dissolvida neste ano). Houve desgaste desses governos, por várias razões. Teve a corrupção, a dificuldade em entregar serviços de qualidade e, por fim, a crise econômica sistêmica, a partir de 2008. Esse desgaste, mais o panorama internacional, favoreceu a ascensão de governos conservadores não apenas na América do Sul. É um movimento relacionado a outras regiões.

Uma crítica que se faz à Frente Ampla, no Uruguai, foi de ter promovido apenas maior consumo dos mais pobres, sem outros avanços. É algo que se fala também no Brasil. A esquerda deve uma autocrítica?

Lá como cá, houve um processo forte de redução das desigualdades, que é preciso resgatar — e a gente valoriza isso muito pouco. Mas as reformas estruturais necessárias não foram entregues. O acesso à universidade e aos bens de consumo aumentou muito, lá como cá, mas tendo a concordar que esses governos de esquerda não conseguiram dar impulso à industrialização, gerar empregos estáveis e que permitam às pessoas progredir socialmente sem precisar de programas de assistência. A esquerda na América do Sul cometeu falhas, e essa foi a principal.

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Três no páreo

07/07/2019

 

 

Conheça os principais candidatos à presidência do Uruguai

O governista

O engenheiro Daniel Martínez, 62, deixou a prefeitura da capital, Montevidéu, para enfrentar o desafio nada cômodo de manter no poder a coligação esquerdista Frente Ampla. Desde 2005, a legenda enfileirou três governos, o primeiro deles com o atual mandatário, Tabaré Vázquez, e o segundo com o popular José Pepe Mujica. Martínez, que já foi senador e ministro da Indústria, derrotou com folga, nas primárias, um sindicalista comunista e uma concorrente apoiada por Mujica. Desgastada por 15 anos no poder, a Frente Ampla lidera as pesquisas, mas tem dificuldades à vista para um segundo turno que se anuncia inevitável. No discurso da vitória, o candidato rebateu as críticas da oposição à situação da economia e reafirmou os compromissos fundamentais da coligação. “Não existe desenvolvimento econômico sem desenvolvimento humano e justiça social”, proclamou. “A Frente Ampla nasceu para mudar o país, e o transformamos com base na justiça e na igualdade.”

O herdeiro

O senador Luis Lacalle Pou do Partido Nacional (conhecido também como “blanco”), tem 45 anos e carrega a política no DNA. Seu pai, Luis Alberto Lacalle, foi presidente do Uruguai entre 1990 e 1995, intercalando os dois mandatos do colorado Julio María Sanguinetti. Candidato à presidência em 2014, foi derrotado por Tabaré Vázquez, mas parte para a segunda tentativa demonstrando sólida confiança nas chances de derrotar a coligação esquerdista que governa o país há 15 anos. “Amanhã, começaremos a construir um governo, porque o Uruguai começou a tirar os olhos da Frente Ampla e a procurar outros em quem confiar”, disse ao comemorar a vitória nas primárias do último dia 30. Nelas, Lacalle derrotou o empresário Juan Sartori, estreante na política e fã declarado do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro — mas que nunca viveu no Uruguai. Depois de ter subido vertiginosamente nas pesquisas, porém, Sartori saiu da eleição interna no patamar de 20% dos votos.

O azarão

O economista Ernesto Talvi, 61, é filho de um macedônio e uma cubana. Entra na campanha presidencial, pelo Partido Colorado, correndo por fora contra os dois favoritos — e visto pelos analistas como uma “reserva de votos” para Luis Lacalle, já que seus eleitores tendem a se identificar com a oposição. Autodefinido como um “liberal progressista”, Talvi concentrou a campanha para as primárias nos temas da educação e da segurança pública, indicadores do que apresentou como “um país em decadência”, “uma sociedade cada vez mais agressiva e violenta”. Sob o governo da Frente Ampla, critica, o Uruguai “acumulou apenas bens materiais”. Desde que se lançou candidato, vem investindo na construção de uma equipe “com gente jovem e vocacionada, com ou sem experiência pública”, para montar, se eleito, “um governo vanguardista e moderno”, “um projeto de renovação em todos os níveis”.