O Estado de São Paulo, n. 46020, 17/10/2019. Economia, p. B4

 

Metade dos brasileiros vive com R$ 413 por mês

Daniela Amorim

17/10/2019

 

 

DESIGUALDADE /  Diferença de renda no País é a maior desde 2012, aponta IBGE; o 1% mais rico ganha 40 vezes mais do que 50% da população

A miséria ficou mais profunda no Brasil em 2018. No ano passado, os brasileiros mais pobres ficaram ainda mais pobres, e os mais ricos se enriqueceram mais. A desigualdade de renda subiu a nível recorde, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), iniciada em 2012 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE. A distância entre o topo e a base da pirâmide social, tendo como referência a distribuição de riqueza, aumentou ainda mais.

A metade mais pobre da população, uma massa de quase 104 milhões de brasileiros, vivia com apenas R$ 413 mensais no ano passado. O cálculo considera todas as fontes de renda, entre elas aposentadoria, pensão, salários e Bolsa Família, por exemplo. No outro extremo, o 1% mais rico – somente 2,1 milhões de pessoas – recebia R$ 16.297 por pessoa, em média. Ou seja, essa pequena fatia mais abastada da população ganhava quase 40 vezes mais que a metade da base da pirâmide populacional.

“A gente sabe que historicamente (o Brasil) é um dos países com a maior concentração de rendimentos, talvez entre os dez maiores”, lamentou Maria Lucia Vieira, gerente da Pnad. Em todo o País, 10,4 milhões de pessoas (5% da população) sobreviviam com R$ 51 mensais, em média.

Fosso. A renda domiciliar per capita dos 5% mais pobres caiu 3,8% na passagem de 2017 para 2018. Ao mesmo tempo, a da fatia mais rica (1% da população) cresceu 8,2%. O Índice de Gini da renda domiciliar per capita – medida de desigualdade de renda numa escala de 0 a 1, em que quanto mais perto de 1 maior é a desigualdade – subiu de 0,538 em 2017 para 0,545 em 2018, o maior nível já registrado.

Trabalho. Para Maria Lucia, o fenômeno tem relação com a crise no mercado de trabalho, que afetou especialmente o estrato de trabalhadores com menor qualificação e menor remuneração. “Continuam no mercado de trabalho aqueles que ganham mais.”

Quando a geração de vagas começou a melhorar, os desempregados que conseguiram voltar ao mercado assumiram postos piores do que os do passado. “Ao perderem seus trabalhos, as pessoas vão arrumar outras ocupações em que consigam ter alguma remuneração. Se o momento tem mais demanda por trabalho do que oferta, as pessoas acabam aceitando funções com remunerações mais baixas”, explicou Matia Lucia.

Com mais pessoas trabalhando, a massa de renda de todas as fontes cresceu de R$ 264,9 bilhões em 2017 para R$ 277,7 bilhões em 2018. Como a concentração aumentou, os 10% mais pobres detinham apenas 0,8% da massa de rendimentos, enquanto que os 10% mais ricos concentravam 43,1% desse bolo.

Se considerados apenas os trabalhadores com renda do trabalho (excluindo outras fontes, como benefícios ou aplicações financeiras), a fatia de 1% mais bem remunerada recebia R$ 27.744 mensais, o que corresponde a 33,8 vezes o rendimento dos 50% dos trabalhadores com os menores rendimentos. Estes recebiam, em média, R$ 820, menos que o salário mínimo em vigor no ano. A diferença foi a maior da série histórica da pesquisa.

Disparidade

“Continuam no mercado de trabalho aqueles que ganham mais.”

Maria Lucia Vieira

GERENTE DA PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICÍLIOS CONTÍNUA

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'Antes de ter o barraco, morei de favor' - Sandra e as três filhas vivem em uma área de ocupação com um benefício mensal de R$ 998

José Maria Tomazela

17/10/2019

A três quilômetros do aeroporto de Sorocaba, um dos que mais registram pousos e decolagens no interior do Estado de São Paulo, a família da doméstica Sandra Arlindo de Oliveira, de 32 anos, luta para sair da pobreza. Ela e as filhas Roberta, de 13 anos; Sara, de 9 anos; e Cristina Gabriely, de 4 anos, sobrevivem com uma renda per capita mensal de R$ 312. Até o ano passado, quando dependiam exclusivamente do Bolsa Família, essa renda era ainda menor.

O reconhecimento da deficiência da filha caçula, que perdeu o olho esquerdo ainda bebê, garantiu a ela um benefício mensal de R$ 998. Com a inscrição da família no cadastro único para programas sociais do governo, o pagamento do Bolsa Família foi suspenso. “Disseram que o benefício da menina já inclui o Bolsa Família, por isso paramos de receber uns R$ 300 por mês”, disse a mãe. A renda familiar é complementada pela pensão alimentícia de R$ 250 mensais que o pai de Roberta e Sara paga a elas.

A família mora em área de ocupação à margem da linha férrea da antiga Fepasa, no Jardim Marly, zona norte da cidade. Sandra conta que participou da “invasãozinha” há cerca de dois anos. Durante um ano e meio, ela e as crianças moraram no barraco de madeira que montou com a ajuda de outros ocupantes. Sobre a área onde vivem 117 famílias, pesam duas ações de reintegração de posse, uma delas movida pela União. Mesmo assim, Sandra conseguiu erguer uma casa de três cômodos – sala e cozinha juntas, e dois quartos. “Antes de ter o barraco, morei de favor e em casa de aluguel. Agora tenho meu teto porque minha mãe deu os tijolos e meu irmão ajudou a erguer as paredes.”

A casa simples tem no interior apenas o indispensável: uma cama de casal em cada quarto, um jogo de sofás e um televisor na sala, geladeira e fogão bastante usados na cozinha, e um tanquinho para lavar as roupas. “Como a parte de esfregar a roupa quebrou, me deram outro, mas ainda não está instalado”, contou a mulher. A água é retirada de um poço domiciliar cavado na frente da casa, e o esgoto vai para uma fossa simples, aberta um pouco mais abaixo. “Por ser área de ocupação, não temos asfalto, nem nada. A nossa energia é ‘gato’”, conta Sandra. A família não tem microcomputador e divide um único celular.

Adolescente, Roberta é a que mais se ressente da falta de internet. “Às vezes, preciso da rede para estudar, mas nem na escola tem computador”, disse. Ela está na 7.ª série do ensino fundamental em uma escola estadual e, segundo a mãe, é aluna aplicada, que sonha em fazer pedagogia. “Peguei as notas dela e só tem 10 nas provas.” Sara estuda na mesma escola e a pequena Cristina Gabriely conseguiu vaga em uma escola infantil municipal.

A família conta com a solidariedade de vizinhos e de entidades assistenciais para não sofrer privação alimentar. Sandra paga R$ 100 por mês para um fundo criado para buscar a regularização da área. “Ainda estou pagando o guarda-roupa que comprei para elas e o olhinho (prótese ocular) da pequena. Recebi a Bolsa Família por 12 anos e me ajudou muito. Agora, tenho de usar bem o novo benefício. Preciso terminar a casa e queria dar um celular novo para a Roberta, mas fazer o quê? Não posso sair para trabalhar por causa da menina (Cristina) que precisa de cuidados e não fica sem mim”, lamenta a mãe.