Correio braziliense, n. 20500, 07/07/2019. Cidades, p. 20

 

Celular como arma de criminosos

Isa Stacciarini

07/07/2019

 

 

Instrumento poderoso de comunicação, os aplicativos de mensagens eletrônicas se tornaram, também, o principal meio de conversa entre bandidos. A partir de troca de áudios, mensagens de texto ou ligações pela internet, criminosos planejam ataques, executam as ações, combinam fugas e até articulam resgates de presos. Com a proteção da criptografia prometida pelos dispositivos, criminosos se escondem pela tela de smartphones e dificultam o trabalho da polícia.

Mas, desde 2015, policiais desencadeiam operações a partir de provas colhidas em conversas de aplicativo. Na mais recente, em 6 de junho passado, a Divisão de Combate ao Crime Organizado (Draco) prendeu 13 policiais militares suspeitos de desviar 297 kg de maconha. Investigadores constataram a criação de um grupo no WhatsApp em que os investigados conversavam sobre montar uma ação especial para prender um traficante e desviar parte da maconha em poder dele. A operação policial recebeu o nome de Dolus Manus.

No início deste ano, policiais da 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul) miraram um traficante que comercializava drogas “gourmets” pelo mesmo aplicativo. Ele negociava a venda de maconha e haxixe. Outra ação que marcou a cidade ocorreu em 2015, quando 25 integrantes de uma quadrilha especializada em explosões de caixas eletrônicos foram presos a partir da operação Hostibus. As informações que possibilitaram a identificação do grupo só foram possíveis por meio do resgaste de mensagens de WhatsApp, conforme destacou, na época, o então titular da Delegacia de Repressão a Roubos e Furtos (DRF), Fernando Cesar Costa.

Para não alertar criminosos nem revelar práticas de investigação, policiais evitam comentar técnicas de trabalho. Mas alertam que a comunicação segura no celular propicia a prática de crimes. “Não existe o impossível no mundo da tecnologia”, ressalta o agora chefe da Coordenação de Repressão a Homicídios e de Proteção à Pessoa (CHPP), Fernando Cesar. Ele defende a aplicação imediata do marco civil da internet para os provedores de aplicativo concederem à polícia trechos de mensagens de investigados (confira O que diz a lei).

“O direito à privacidade tem sido usado para prática de crimes. É claro que, para acessar o conteúdo de mensagens, tem de haver indício de materialidade. Não será algo praticado de forma banal, mas um recurso aplicado para delitos graves ,que não só cometem violência, mas, também, corrupção”, defende.

Segundo o delegado, a disponibilidade das mensagens aconteceria quando autorizada judicialmente. Assim, as empresas teriam de criar um servidor para guardar e armazenar esses conteúdos por um período de tempo. O WhatsApp, por exemplo, não dispõe desse recurso. “Dez por cento dos usuários do aplicativo são do Brasil. A empresa não abriria mão desse mercado, se houvesse uma legislação mais rigorosa”, avalia Fernando Cesar.

Procurada, a assessoria de imprensa do WhatsApp informa que não fará posicionamento oficial. Apenas enviou um material que compila as informações sobre como o aplicativo lida com as regras da criptografia.

Bloqueios

Como forma de punição aos aplicativos de mensagens, por eles não disponibilizarem conteúdos de investigações criminais, juízes de primeira instância do Rio de Janeiro, de Teresina, de São Paulo  dee Aracaju chegaram a determinar o bloqueio do WhatsApp por até 72 horas, entre 2015 e 2016, mas nunca o aplicativo ficou todo esse tempo sem funcionar, porque liminares cassaram a determinação dos magistrados. “A quem interessa que o WhatsApp não seja bloqueado? A discussão sobre ataques organizados pelo aplicativo tem tanta importância no mundo do crime, como o debate de tráfico de armas, por exemplo”, critica Fernando Cesar.

O delegado Leonardo de Castro, titular da Coordenação Especial de Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e aos Crimes contra a Administração Pública (Cecor), reforça que o celular tem sido cada vez mais uma arma para os criminosos. “Eles conseguem se articular, mesmo a distância, promovendo, muitas vezes, até reuniões. A polícia sempre está um passo atrás”, lamenta.

Professora de ciência da computação da Universidade de Brasília (UnB), Celia Ghedin Ralha pondera que, dependendo da criptografia, existe a possibilidade de ter acesso às mensagens. “Não existe segurança total, irrestrita e ilimitada na rede. Se há um registro, ele pode ser recuperado. O problema é de que forma esse conteúdo será utilizado. Hoje, temos as nossas informações disseminadas nos meios digitais de redes sociais, e as pessoas não têm noção do que pode ser feito com esses dados”, acrescenta.

“Antes, a polícia utilizava interceptação telefônica (para monitorar criminosos). Hoje, os bandidos utilizam aplicativos, o que dificulta a investigação, por causa da criptografia que, de certa forma, protege os criminosos”, diz Laerte Peotta, professor da Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em criptografia e segurança da informação.

Mas, segundo o estudioso, assim como acontece nos computadores, apagar uma mensagem do celular não elimina o conteúdo. “Mesmo que você não enxergue no sistema operacional, o conteúdo continua no dispositivo. Por meio de técnicas, se consegue restabelecer essas mensagens que ficam armazenadas”.

Memória

Queda de braço

A Justiça determinou, diversas vezes, o bloqueio do WhatsApp em razão de a empresa se negar a oferecer informações sobre investigados

Fevereiro de 2015

A primeira vez em que um juiz determinou o bloqueio do WhatsApp foi em fevereiro de 2015, após decisão de um juiz de Teresina, mas, na ocasião, o aplicativo não chegou a sair do ar. Um desembargador do Piauí derrubou o mandado judicial 15 dias após a decisão do juiz de primeira instância, alegando que as operadoras e os usuários não poderiam ser penalizados.

Dezembro de 2015

A primeira vez que o aplicativo saiu do ar foi a partir de uma decisão de uma juíza de São Bernardo do Campo. Ela determinou a suspensão do WhatsApp por 48 horas. Na decisão, a magistrada alegou que o aplicativo deixou de atender a uma decisão judicial de julho do mesmo ano envolvendo uma ação criminal. Um mandado de segurança feito pela empresa derrubou a decisão 14 horas depois.

Maio de 2016

O WhatsApp ficou bloqueado em todo o país por aproximadamente 24 horas, após uma decisão de um juiz de Sergipe. O magistrado havia determinado a interrupção do aplicativo por 72 horas (derrubada por liminar). Novamente a alegação era de que a empresa não forneceu conteúdos que eram investigados pela Polícia Civil.

Julho de 2016

Uma juíza de Duque de Caixas determinou o bloqueio do WhatsApp após a empresa se recusar a cumprir uma decisão judicial de fornecer informações para investigação da Polícia Civil. A magistrada exigiu que as operadoras de telefonia suspendessem o acesso dos internautas ao aplicativo.

O que diz a lei

A Lei nº 12.965 regulamenta aspectos do marco civil da internet (mas os aplicativos de mensagens estrangeiros, como WhatsApp e Telegram, não se submetem a ela). Conhecida como a “Constituição da internet”, a lei foi sancionada em 2014 e institui diretrizes sobre o uso da internet no Brasil. A norma exige que os provedores de acesso precisam guardar registros dos internautas por um ano. Os provedores de aplicativos em geral devem guardar essas informações por seis meses. Mas eles só são obrigados a fornecer informações dos usuários se receberem ordem judicial. De acordo com a legislação, qualquer empresa que opere no Brasil, mesmo sendo estrangeira, deve respeitar a legislação do país e fornecer as informações requeridas pela Justiça. Caso contrário, será punida com sanções, como advertência, multa de até 10% de seu faturamento, suspensão das atividades ou proibição de atuação.

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Três perguntas para...

 

 

 

 

 

Frederico Meinberg

07/07/2019

 

 

 

promotor da unidade especial de proteção de dados e inteligência artificial do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)

Qual o equilíbrio entre a criptografia das mensagens e o interesse da investigação criminal?

A criptografia é a maior linha de defesa que o cidadão tem contra a violação da privacidade e defendo que ela deva ser mantida. Ao mesmo tempo, por outro lado, existe uma briga do WhatsApp e do Facebook com a entrega das informações. Em grande parte, algumas empresas falam de usar um tratado internacional para obter essas informações. E elas devem ser entregues para a autoridade judiciária brasileira sem a necessidade de uma forma com que se operacionalize isso.

Quais as alternativas de investigação em aplicativos de mensagens?

Ao tratar de uma investigação, seja no WhatsApp, seja no YouTube ou em outros aplicativos, a primeira coisa que se precisa entender é o modelo de negócio da empresa e como a infraestrutura dela funciona. No WhatsApp, por exemplo, os investigadores podem conseguir informação de um grupo do qual alvo faz parte. Em uma investigação sobre pedofilia, quando a polícia tem acesso às redes de contato dos investigados, há um mapeamento de todas as possíveis vítimas. O WhatsApp faz isso. Mas um problema é a falta de conhecimento do poder público brasileiro sobre as ferramentas. Essa é uma realidade que se repete no país e no mundo. E as autoridades estão despreparadas para entender o que há nesse mundo.

Os criminosos têm mudado a forma de se organizar?

Houve uma mutação. A criminalidade mudou, e as interceptações telefônicas são técnicas de investigação da década de 1990. Houve uma alteração de como os criminosos se comunicam e como agem. Da mesma forma que isso impôs uma dificuldade na investigação, houve a criação de janelas de oportunidades que não existiam há sete anos, por exemplo. Existem, hoje, recursos de tecnologia para combater o crime que nunca se pensou antes. Com uma equipe qualificada, chega-se a resultados muito maiores do que na década de 1990. O Distrito Federal tem a melhor delegacia cibernética no Brasil, porque atua em três pilares: criatividade, conhecimento técnico extremo e capacitação. Dessa forma, não existe pensar em não combater a criminalidade.

Criptografia

Em abril de 2016, o WhatsApp anunciou a criptografia das mensagens no aplicativo. O recurso protege a comunicação entre os usuários. A propaganda que se faz é que nem mesmo o WhatsApp consegue ter acesso às conversas, porque elas ficam restritas entre emissor e receptor. Significa que o conteúdo não passa por um servidor. Além disso, os textos possuem uma chave de acesso que só são liberadas para quem envia e quem recebe os conteúdos. Depois, esse código volta a ser embaralhado.

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Vigilância constante nos presídios

07/07/2019

 

 

 

O uso dos celulares no mundo do crime também é uma preocupação intramuros nos presídios. Por essa razão, o sistema carcerário do Distrito Federal tenta barrar a entrada dos aparelhos. Para isso, agentes utilizam detectores de metais e scanners corporais (body scanner) que identificam objetos no estômago, por exemplo. Subsecretário do sistema penitenciário, o delegado Adval Cardoso reforça a preocupação com a entrada de celulares nos presídios. “Existem, hoje, aparelhos telefônicos do tamanho da ponta de uma caneta que, se entram no sistema, certamente vão direto para as mãos de presos ligados a facções. Com os celulares, eles articulam crimes, ataques a instituições, planejamento de fugas e até resgate de outros internos que saem para fazer consulta em hospital ou ir a audiências judiciais, como acontece em boa parte do Brasil”, diz.

De acordo com Cardoso, parentes de presos são os que mais tentam acessar o presídio com celulares. “Especialmente as mulheres, por causa da possibilidade de esconder os objetos nas cavidades, e até no estômago, com registro de pessoas que engolem os materiais não permitidos. Nossa preocupação é constante. Fazemos um trabalho meticuloso e delicado para que os celulares não entrem nos presídios”, afirma.

Quem é flagrado tentando entrar com celular no presídio é autuado em flagrante pelo crime de favorecimento e é levado para a delegacia. Na unidade policial, a pessoa assina um termo circunstanciado, se comprometendo a comparecer em juízo. A pena é de detenção de três meses a um ano. “Quem é autuado também perde o direito de visitar o parente por tempo indeterminado e, para retomar, precisa recorrer à Vara de Execuções Penais (VEP)”, explica o delegado.