O globo, n.31376, 03/07/2019. País, p. 06

 

Encontro de contas 

Daniel Gullino

Gustavo Maia 

03/07/2019

 

 

O Senado avançou no debate sobre um projeto que obriga os presos a pagarem por suas despesas no sistema prisional. A votação em plenário foi marcada para a próxima semana em um acordo entre os líderes. O presidente Jair Bolsonaro manifestou apoio à proposta e foi além ao classificar como um problema que a Constituição não permita aplicação de pena de “trabalho forçado” a presos.

A proposta começou a ser discutida em plenário, mas foi adiada para a negociação de alterações no texto. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ressaltou que, como havia um compromisso para analisar o projeto ontem, a votação será feita na próxima terça-feira:

— Diante das manifestações proferidas por senadores, retiro o projeto de pauta. Mas, por um compromisso desse presidente com a liderança do PSL, estará pautado para a próxima terça-feira.

O projeto altera a Lei de Execução Penal, acrescentando a obrigatoriedade de o preso ressarcir o Estado pelos gastos com a sua “manutenção no estabelecimento prisional”. Caso o detento tenha condição financeira de pagar suas despesas e não o faça, o valor será convertido em dívida. Se o preso não tiver recursos próprios para fazer o ressarcimento, terá de trabalhar, nos termos da legislação atual sobre o tema, com um desconto de até um quarto da remuneração para fazer essa “devolução” ao Estado.

No caso de presos provisórios, o valor a ser pago pelos presos seria depositado em uma conta judicial. Caso a condenação seja confirmada, o valor será revertido para cobrir os gastos. Em caso de absolvição, o dinheiro será restituído. Em 2016, a então presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Cármen Lúcia, orçou em R$ 2,4 mil o gasto mensal com um preso no país.

Apesar de defender o projeto, Bolsonaro gostaria que o texto fosse mais duro e obrigasse os presos a trabalhar, embora a Constituição Federal proíba essa medida. O inciso 47 do artigo 5º, no título dos direitos e garantias fundamentais, estabelece que “não haverá penas”: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento; cruéis.

— Bem-vindo. Se puder pagar. Qual o problema da nossa Constituição? Acho que no artigo 5º tem: não haverá trabalho forçado. Acho que o preso tem que ser obrigado a trabalhar. Sei que muitos trabalham por livre e espontânea vontade e (a pena) é abatida — declarou o presidente, de manhã, antes da votação.

O ponto que provocou mais polêmica foi a determinação de que se o preso, mesmo com o trabalho, não tenha condições de ressarcir todos os seus gastos, a dívida será suspensa por cinco anos. Somente se a situação financeira não mudar depois desse prazo a dívida seria extinta. A relatora, Soraya Thronicke (PSL-MS), concordou em retirar esse prazo de cinco anos.

—Depois que ele cumprir a pena, a gente abre mão de ficar essa dívida suspensa por cinco anos. Eu abro mão, tranquilamente. Se ele é hipossuficiente, ele saiu e não deve mais nada para o Estado — explicou Soraya ao GLOBO depois da sessão.

— Ele paga até o último dia dele, e quando sai, está livre dessa.

Segundo a relatora, essa é a segunda vez que a análise do projeto é adiada. Em maio, a proposta chegou a ser pautada no plenário, mas houve um acordo para que passasse pela Comissão de Direitos Humanos (CDH), onde foi aprovada, mas com alterações. Soraya destacou que conseguiu unanimidade naquela comissão, que era tida como refratária à proposta:

— Consegui que situação e oposição votassem todo mundo junto. Porque todo mundo compreendeu.

IRONIAS

A Lei de Execução Penal determina que os presos podem trabalhar, mas não há obrigação. O texto diz que esse trabalho terá “finalidade educativa e produtiva”. A lei já prevê que, caso haja trabalho, a remuneração deve servir para ressarcir os gastos, além da indenização dos danos causados pelo crime e da assistência à família do preso. Durante o debate, alguns senadores destacaram o fato de que o Estado não oferece possibilidade de trabalhos a muitos dos detentos.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL) ironizou que seria necessário criar uma estatal com milhares de funcionários para fiscalizar quais presos estariam devolvendo ou não o dinheiro referente às seus gastos.

ENTENDA AS REGRAS

1 Montante arrecadado será depositado em conta judicial

O valor a ser pago pelos presos será depositado em uma conta judicial. Caso a condenação seja confirmada, será revertido para cobrir os gastos. Em caso de absolvição, o dinheiro será restituído.

2 Se preso optar por não pagar, será inscrito como devedor

Caso o preso tenha condição financeira de pagar suas despesas e não o faça, o valor será convertido em dívida, com a mesma legislação relativa à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública

3 Trabalho pode abater dívida de preso que não tenha recursos

Se o preso não tiver recursos próprios para realizar o ressarcimento, terá que trabalhar, nos termos da legislação atual sobre o tema, com um desconto de um quarto da remuneração recebida

4 Dívida pode ser extinta em cinco anos se preso for pobre

Caso o preso, mesmo com o trabalho, não tenha condições de ressarcir, a dívida será suspensa por cinco anos. Se a situação financeira não mudar depois desse prazo, a dívida será extinta.

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'Índice de reincidência vai explodir', diz professor 

Sérgio Roxo 

03/07/2019

 

 

Professores de Direito Penal avaliam que um dos obstáculos para o projeto que obriga presos a reembolsarem o que foi gasto com eles no sistema penitenciário é a carência de oferta de trabalho nos presídios. O entendimento é que, no quadro atual, cobrar os detentos se torna inviável. A possibilidade de inscrever o preso na dívida ativa da União também é controversa, segundo estudiosos, e contribui para o retorno de ex detentos à vida do crime.

— É justo e razoável que o preso pague pelo custo que o Estado tem na manutenção do regime prisional, mas não me parece proporcional que o Estado queira cobrar se, na maioria das vezes, não dá ocupação ao preso — afirma David Teixeira de Azevedo, professor de Direito Penal da USP.

Um levantamento de abril deste ano feito pelo site G1 nos dados do Monitor da Violência, parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que apenas 18,9% dos presos do país trabalham. Atualmente, a população carcerária é de pouco mais de 730 mil.

Azevedo diz que o “dever” de trabalhar já existe. De acordo com o professor da USP, o presidente Jair Bolsonaro está “mal informado” quando cobra uma ocupação obrigatória.

— O trabalho é obrigatório. Tanto que se há trabalho e o preso não trabalha, isso é considerado falta. A Lei de Execução Penal já estabelece o trabalho como parte do processo de ressocialização do preso. O trabalho constitui um dever do preso.

Azevedo também explica que não haveria pelo projeto configuração de trabalho forçado, que é proibido pela constituição brasileiro.

—Não configuraria trabalho forçado de modo nenhum. A ideia de trabalho forçado ocorre quando o serviço que se presta não é remunerado ou a remuneração é paga apenas simbolicamente —diz Azevedo.

Já a inscrição do preso na dívida ativa da União é “um absurdo”, segundo Azevedo.

— Isso dificulta a reinserção social. O índice de reincidência vai explodir. O preso já sai com uma dívida. Faz parte dessa ideia punitivista do governo Bolsonaro.

Carlos Kauffmann, professor de Direito Penal da PUC-SP, não considera que a cobrança desrespeite a constituição do país. O especialista, porém, assim como seu colega, entende que a falta de oferta de postos de trabalho nos presídios inviabiliza a cobrança.

—Para que o Estado possa exigir o pagamento de uma dívida, tem que dar condições para que o preso trabalhe — avalia Kauffmann.