O globo, n.31370, 27/06/2019. País, p. 04

 

Medindo forças

Daniel Gullino

27/06/2019

 

 

Projeto que pune juiz e MP por abuso de autoridade é aprovado no Senado

No momento em que a atuação do ministro da Justiça Sergio Moro como juiz na Operação Lava-Jato é contestada, o Senado aprovou ontem um projeto prevendo punição ao abuso de autoridade de magistrados e integrantes do Ministério Público (MP).

A medida é um desejo de boa parte do Congresso há pelo menos três anos, mas esbarrava na popularidade da força-tarefa de Curitiba, que reage à proposta. Com a veiculação pelo site The Intercept Brasil de mensagens atribuídas a Moro e procuradores, parlamentares enxergaram uma possibilidade de retomar o tema.

A proposta foi incluída pela Câmara, no final de 2016, no pacote das “dez medidas contra a corrupção”, apresentado pelo próprio MP. Na época, os deputados também rejeitaram algumas das propostas do Ministério Público. O texto chegou ao Senado em abril de 2017 e ficou parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) até este mês.

Há duas semanas a proposta entrou de última hora na pauta da CCJ, a pedido do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Foi uma estratégia para tentar estancar a crise gerada pelas mensagens divulgadas pelo Intercept. O objetivo foi tentar evitar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e a convocação de Moro pelo plenário da Casa.

Apesar de o projeto manter algumas medidas, como a criminalização do caixa dois e o aumento de pena para corrupção, o trecho que dominou as discussões ontem foi o que trata do abuso de autoridade. Alterações de última hora foram feitas, muitas delas atendendo a pedidos de associações de classe, mas isso não impediu parlamentares de encararem a medida como um ataque a investigadores e juízes.

O projeto determina que magistrados e membros do Ministério Públicos ficam sujeitos a uma pena de seis meses a dois anos de detenção, que pode ser cumprida no regime semiaberto ou aberto, se, entre outros pontos, atuarem com “evidente motivação político-partidária” ou participarem em casos em que sejam impedidos por lei.

Também há restrição para comentários públicos sobre processos em andamento, mas ela é mais rígida para juízes, para quem é proibida qualquer “opinião”.

—Isso pode ser interpretado em cada caso concreto. Falar o que não está nos autos e que não seja verdadeiro, com o objetivo de prejudicar alguém ou de se beneficiar, pode eventualmente caracterizar crime de abuso de autoridade. Não significa que toda manifestação será tida como crime. São aqueles casos que extrapolam muito—disse o relator, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

O relator atenuou o texto aprovado pela Câmara. Diferenças na interpretação da lei não poderão ser enquadradas como crime. Esse foi um dos pontos defendidos por Moro, durante audiência no Senado em 2016, quando ele era responsável por casos da Lava-Jato. O senador também propôs que, para haver abuso, é preciso que haja a intenção de prejudicar alguém ou beneficiar a si próprio, “para satisfação pessoal ou por mero capricho”.

OUTRA RESTRIÇÃO

O senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) afirmou que o projeto nasceu como uma reação à Lava-Jato e que votá-lo agora iria reforçar um movimento contra Moro:

— Votar isso nos dias de hoje é pedir para ser execrado pela opinião pública. Há uma verdadeira onda neste país com as notícias do Intercept, com a tentativa de colocar sob suspeição o ministro Sergio Moro.

A CCJ do Senado também aprovou ontem uma Proposta de Emenda à Constituição que proíbe magistrados de tomarem decisões individuais que suspendam leis e atos normativos. A matéria precisa passar pelo plenário e, depois, pela Câmara. Se estivesse em vigor, o ministro Luís Roberto Barroso,do Supremo Tribunal Federal, não poderia ter concedido liminar, na última segunda-feira, para suspender trecho da medida provisória que transferiu para o Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas.

Principais pontos

ABUSO DE AUTORIDADE

> O projeto estabelece penas de seis meses a dois anos de detenção (podendo ser cumpridas em regime semiaberto ou aberto) e multa para magistrado ou membro do Ministério Público (MP) que:

> Atuar em processo quando, por lei, seja impedido.

> Receber custas ou participação em processo

> Expressar “opinião”, no caso de magistrados, ou “juízo de valor” sobre procedimento ou processo ainda a ser analisado, > Promover a instauração de procedimento sem que existam indícios mínimos de prática de algum delito, com exceção de investigação preliminar sobre notícia de fato (somente para membros do MP).

COMBATE À CORRUPÇÃO

> Criminalização do caixa dois e da compra de votos

> Aumento de pena e inclusão na lista de crimes hediondos dos crimes de corrupção passiva e ativa, peculato e concussão (extorsão ou exigência de vantagens indevidas por funcionário público) > Obrigação de partidos terem código de ética e mecanismos de integridade (compliance)

> Partidos podem ser responsabilizados por atos de corrupção praticados por seus membros

> Juiz pode retirar bens de acusados antes da condenação final

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Lava-Jato diz que texto aprovado contém 'pegadinhas'

Ana Letícia Leão

Tiago Aguiar

27/06/2019

 

 

Associação de juízes federais considerou projeto ‘muito aberto e subjetivo’; professores de Direito elogiaram proposta

A aprovação pelo Senado do projeto de lei que pune abuso de autoridade por parte de juízes e promotores foi criticada por entidade que representa juízes federais e pela força-tarefa da Lava Jato. O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mendes, disse que o texto é “muito aberto e subjetivo”.

 

— Argumentamos com o relator (senador Rodrigo Pacheco) que talvez fosse adequado tirar o capítulo do abuso de autoridade porque já há um projeto de lei que aborda isso. E do ponto de vista técnico, o anterior era melhor —argumentou.

O coordenador da Lava-Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, classificou como “pegadinha” algumas diretrizes do projeto:

—Dentre as pegadinhas que tem lá há a possibilidade de o investigado investigar e acusar o próprio investigador —disse Dellagnol, em vídeo postado no Twitter.

REUNIÃO PARA ATENUAR

O procurador ressaltou que o projeto teve como origem as Dez Medidas contra a Corrupção, mas que foi “muito deturpado”.

— Ao invés de avançar na luta contra a corrupção, será um retrocesso — disse ele.

Membros da Ajufe e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) se reuniram há duas semanas para discutir o andamento do projeto contra corrupção, no qual foram inseridas medidas contra o abuso de autoridade. Fernando Mendes afirma que parte das sugestões da Ajufe foi acolhida, mas outra parte, acabou não sendo.

— Em um primeiro momento, entendemos que o debate deveria ter sido feito num outro projeto, mas se assim o Senado quis, o que nós fizemos foi contribuir para a melhoria do texto. Ainda há pontos que somos críticos, como tornar crime a violação da prerrogativa dos advogados. Defendemos que esse ponto seja excluído da proposta. — disse o presidente da Ajufe.

Para o ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Streck, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e da Estácio, o projeto é amplo e necessita de análise detalhada.

— No global, é positivo que se faça anteparos ao abuso de autoridade, porque a velha lei era inócua.

Professor de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Davi Tangerino concorda.

— Sempre fui favorável à melhoria da lei de abuso de autoridade, porque o poder das instituições do sistema de justiça criminal cresceu muito recentemente.