O globo, n.31369, 26/06/2019. Rio, p. 14

 

A morte antes da vida 

Elenilce Bottari

26/06/2019

 

 

Rio teve 27 mil jovens assassinados em 26 anos

De 1991 —um ano após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — a 2017, foram assassinados, no Estado do Rio, 27.887 jovens com idade entre 14 e 19 anos. A evolução da estatística mostra que, apesar de a legislação ter entrado em vigor, o quadro só piorou. Em 1991, as mortes violentas representavam 32% do total de óbitos nessa faixa etária da população. Vinte e seis anos depois, os dados mais recentes, de 2017, apontavam que os homicídios já haviam subido para 57%.

O grave quadro — desenhado a partir de dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa em Economia Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — revela que o ECA não foi suficiente para garantir a proteção de jovens em conflito com a lei e a ressocialização deles.

Para especialistas, isso aconteceu porque a legislação nunca saiu integramente do papel. Além disso, o risco de morte aumentou com o colapso do sistema socioeducativo. Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin determinou a liberação de infratores internados em unidades com lotação acima de 119% de sua capacidade. No estado, cerca de 560 jovens, muitos deles condenados por crimes graves, deverão deixar abrigos e passar para o regime de liberdade assistida ou de reclusão domiciliar. Só em agosto, após o recesso do Judiciário, a liminar de Fachin deverá ser apreciada pela Segunda Turma do STF.

ESPECIALISTA: “É TRÁGICO”

Coordenador da pesquisa e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o economista Daniel Cerqueira afirma que o agravamento da violência apontado nas estatísticas foi provocado, em grande parte, pela falta de políticas públicas para a ressocialização de jovens infratores.

— É trágico ver nossos adolescentes sendo assassinados — afirma Cerqueira.

—Antes da morte física, eles tiveram uma simbólica, porque são jovens que não tiveram condições de desenvolvimento adequadas, família estruturada, boa educação e acesso ao trabalho. O futuro deles foi a morte prematura. A sociedade abandonou essa parcela da juventude.

Para a procuradora Flávia Ferrer, que atua nos processos de segundo grau de jovens infratores do estado, a manutenção da ordem de Fachin pode provocar ainda mais mortes entre jovens:

—Muitos, quando foram apreendidos, perderam armas e drogas. Ao serem soltos, eles voltarão para suas comunidades e terão que pagar essa dívida ao tráfico. Ou seja, terão que voltar a cometer atos infracionais ou morrerão.

O defensor público Rodrigo Azambuja observa que as estatísticas deixam claro que jovens pobres, evadidos da escola e negros são as principais vítimas da falência do sistema. De acordo com ele, o ECA prevê uma série de medidas que são negligenciadas. Atualmente, uma grande parcela em situação de vulnerabilidade também está fora das salas de aula.

— Os números mostram que eles são os que mais morrem — diz Azambuja, acrescentando não acreditar que a libertação precoce de um grupo, atendendo à ordem do STF, altere a precariedade já instituída. —O risco existe, mas não por conta da liberação. Lamentavelmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente defende a dignidade, mas hoje não podemos falar em dignidade se nem mesmo o direito à vida eles têm.

Para ele, a libertação determinada pelo STF é resultado do total descumprimento de medidas socioeducativas cuja aplicação é uma obrigação do estado:

— Com a superlotação, nenhuma atividade era oferecida àqueles adolescentes para que eles superassem as causas que os levaram a cometer delitos. Com a medida de esvaziar as unidades de internação, quem ficar no sistema terá mais chance de receber um tratamento adequado.