O Estado de São Paulo, n. 46013, 10/10/2019. Política, p. A10

 

FHC falava em 'atraso' com governo Lula

Pedro Venceslau

Paula Reverbel

Marcelo Godoy

10/10/2019

 

 

No quarto volume da série ‘Diários da Presidência’, tucano afirma que era pessimista com a eleição do petista, mas depois mudou o tom

Sucessão. Fernando Henrique Cardoso cumprimenta Lula depois de entregar ao petista a faixa de presidente da República, em 1º de janeiro de 2003

No quarto e último volume da série Diários da Presidência, que chega às livrarias no dia 25, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso conta o processo de aproximação de Luiz Inácio Lula da Silva e de outras lideranças petistas de posições políticas defendidas pelo mercado na economia e revela bastidores dos dois últimos anos de seu mandato e no delicado período da transição, após a derrota em 2002 do tucano José Serra na eleição presidencial.

É possível acompanhar mês a mês a evolução do pensamento do então presidente em relação aos principais candidatos à sua sucessão. Pouco a pouco suas resistências a Lula vão se transformando na atitude que ele resume dessa forma: “Se Lula ganhar vou tentar ajudar o Brasil”.

É assim que FHC justifica sua atitude em relação ao petista durante a campanha eleitoral e a transição. Do primeiro encontro com Lula no Planalto logo após o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, à posse, o então presidente vai modulando nos registros gravados e agora transformados em livro sua atitude em relação a Lula.

Fernando Henrique chega mesmo a dizer de José Dirceu: “Ele raciocina como nós, como um tucano”. E o presidente alerta em agosto de 2002 o dirigente petista sobre as resistências de grandes empresários espanhóis e italianos à eleição de Lula. “Vai ter dificuldades imensas para governar.” FHC começava a captar o processo de transformismo da elite petista. O PT recebia, naquele momento, adesões de todos os lados. E deixava de ser “um partido igualzinho a você”, como no slogan dos anos 1980, para se tornar um “partido igualzinho aos outros”.

E ali o tucano afirma que não iria jogar do lado dos que querem uma crise institucional. Apesar disso, dizia que o PSDB devia apoiar apenas pautas pontuais do governo sem participar da administração petista, que era “um governo que pode não dar certo de forma pavorosa”.

No fim de 2001, FHC dizia que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva seria um “imenso atraso” para o Brasil e que o petista passou 20 anos no Partido dos Trabalhadores sem que tivesse se preparado para o cargo – “ele não aprende”. A legenda dele representava então o pensamento regressivo da esquerda no País.

Mas, em outros momentos do fim do mandato, o tom era diametralmente oposto. “É melhor Lula e Serra do que Lula e Roseana (Sarney, no segundo turno) ou do que Serra e Roseana. Porque Lula e Serra significam forças de progresso. O Lula, mesmo que tenha aspectos atrasados, corporativos, tem aspectos positivos na questão da moralidade pública, na questão de certa responsabilidade fiscal.”

Desastre. Fernando Henrique parecia acreditar que um desastre como o que envolvera na Argentina o governo de Fernando de la Rúa podia atingir o petista. Ao saber do resultado das urnas, disse que não era uma “onda vermelha” ou o petismo que ganhava o pleito, mas o “lulismo”. “É a vontade de mudar.”

Mas qual era a alternativa? Serra é descrito como alguém sem muitas chances, um candidato que não empolgava e, por isso, cada vez mais tenso. Era alguém ainda em torno de quem havia discórdia. Não que o presidente corrobore as acusações de pefelistas e dos tucanos do Ceará contra Serra, de que ele estaria por trás de manobras e intrigas para pavimentar sua candidatura. O tucano “não cria clima de cumplicidade”.

O último biênio de FHC no Planalto é o da degringolada da parceria com o PFL. Era abril de 2002, quando Polícia Federal deflagrou uma operação na sede da empresa Lunus, da qual o marido de Roseana Sarney, Jorge Murad, era sócio. No local, foram apreendidos documentos e R$ 1,34 milhão em espécie, valor não declarado. A foto com os maços de dinheiro sobre a mesa do escritório foi publicada nos jornais e enterrou a candidatura presidencial de Roseana, que estava em crescimento. “Historicamente fica registrado que o Executivo não vazou nada.”

O livro traz ainda momentos importantes da política externa, como a reação aos atentados de 11 de Setembro. FHC descreve sua estadia em companhia do ex-presidente americano Bill Clinton na casa de campo do então primeiro-ministro inglês, Tony Blair, em outubro de 2001.

É quando surge uma cena memorável: Blair, Clinton e FHC sentados na biblioteca da residência discutindo os próximos lances da guerra contra o terror em torno de um mapa-múndi estendido pelo inglês no chão. “Blair fala que a duração da guerra será de pelo menos um ano.” FHC se lembrou então do amigo e sociólogo José Medina Echavarria que dizia que “quanto mais conhecia quem mandava no mundo, mais tinha medo de viver no mundo”.

DIÁRIOS DA PRESIDÊNCIA

2001-2002 (VOL. 4)

Autor: Fernando Henrique Cardoso.

Editora: Companhia das Letras.

Preço: R$ 129.90

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'Tempo para alternativa está longe', diz Hartung

Ricardo Galhardo

10/10/2019

 

 

O ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung (sem partido), que nos últimos meses tem se dedicado a articular a construção de uma alternativa eleitoral de centro, disse ontem que “o momento é de aproveitar o clima favorável a mudanças e não de pensar em 2022”.

“Na vida e na política existe a questão do tempo. Não podemos errar no tempo e o tempo para a gente construir uma alternativa está muito longe do hoje”, afirmou. As declarações foram feitas após o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dizer que “o centro democrático precisa começar a trabalhar já” para quebrar a polarização política.

Hartung participou ontem de almoço com empresários promovido pelo Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE) em São Paulo, onde foi questionado mais de uma vez sobre 2022 e a necessidade de conter a polarização.

Para o ex-governador, não é hora de pensar em eleições, mas de aproveitar o momento favorável para reformas como a da Previdência, a tributária e a do Estado. “O papel nosso não é ficar obcecadamente olhando para 2022. Meu olhar é para o hoje e dá para fazer muita coisa”, disse. Segundo ele, após muitos anos a sociedade finalmente está favorável a mudanças que até pouco tempo seriam consideradas impopulares. “A BR Distribuidora foi privatizada sem que houvesse uma manifestação na porta de ninguém. Isso não é normal”, declarou. Segundo Hartung, o centro já ocupa um espaço maior no debate político hoje do que há dois anos.

Embora tenha divergido de FHC sobre o melhor momento para a construção de uma alternativa de centro, Hartung fez elogios ao ex-presidente e disse que o petista Luiz Inácio Lula da Silva recebeu uma “herança bendita” do tucano.

Questionado sobre uma eventual candidatura presidencial do apresentador Luciano Huck, de quem é próximo, o ex-governador desconversou. Disse que Huck está dedicado à formação de novas lideranças e ao debate sobre a modernização de políticas públicas. “Não sei se agora é hora de discutir isso.”

Hartung também evitou críticas ao presidente Jair Bolsonaro, mas questionou a “falta de liderança” e demarcou diferenças em relação à extrema-direita, ao fazer a defesa do Supremo Tribunal Federal e de outras instituições democráticas.

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Entrevista - Caio Machado: 'Campanhas de desinformação estão mais profissionais'

Alessandra Monnerat

10/10/2019

 

 

‘Campanhas de desinformação estão mais profissionais’

Caio Machado, pesquisador da Universidade de Oxford

Estudo da Universidade de Oxford mapeou campanhas de manipulação da opinião pública na internet em 70 países. No Brasil, pesquisadores identificaram sinais de uso de estratégias para atacar adversários, confundir o debate político e provocar divisões na opinião pública. “Questionar a autenticidade das urnas eletrônicas foi uma estratégia repetida no Brasil, na Argentina e no México. São campanhas cada vez mais fortes e com mais recursos”, disse o pesquisador da Universidade de Oxford Caio Machado, brasileiro que participou do levantamento e realizou estudos sobre notícias falsas nas eleições de 2018.

Qual é a tendência no Brasil em termos de campanhas de desinformação?

É a institucionalização do que chamamos de propaganda computacional. Em países como China, Rússia e EUA, existem superpoderes que já têm um aparato estatal muito desenvolvido para fazer propaganda política digital e usá-la como estratégia de interferência em outros países. Não temos registro de que o Brasil esteja interferindo em outros países, mas o aparato está crescendo muito. Passou a ter uma estrutura física, com empresas privadas e contratos caros. E isso é uma tendência na América Latina inteira, sair do amadorismo e se tornar algo estatal profissional. Isso é preocupante. Por exemplo, questionar a autenticidade das urnas eletrônicas foi uma estratégia repetida no Brasil, na Argentina e no México. São campanhas cada vez mais fortes e com mais recursos.

Quais plataformas estão sendo usadas nessas campanhas?

Já havíamos identificado no ano passado, e voltamos a ver neste ano, a desinformação passar a aplicativos de mensagem, fechados. O WhatsApp é um exemplo, mas não é exclusivo. Olhando para o resto do mundo, identificamos desinformação em todas as plataformas: Telegram, Line, WhatsApp, Instagram. Até no Tinder. Não é um problema de uma plataforma só.

O Facebook continua a ser a principal plataforma para desinformação, segundo a pesquisa.

O Facebook ainda é a plataforma principal, mas detectamos outras muito relevantes, como Instagram e YouTube. As iniciativas que o Facebook tem feito (de combate à desinformação) são insuficientes, mas talvez seja a plataforma mais fácil de resolver, porque é um ambiente aberto. É mais fácil usuários e autoridades identificarem o que está acontecendo ali. Um ambiente muito mais difícil de compreender é o YouTube, que não é uma rede social, é um acervo de vídeos. A pesquisa recente mostra que tem gente se aproveitando do algoritmo de recomendação do YouTube para promover radicalização, algo muito difícil detectar. É a mesma coisa para o Instagram, onde as pessoas costumam ter mais contas fechadas. É muito difícil ver o que está acontecendo.

O número de países mapeados pela pesquisa com campanhas de manipulação aumentou 150% nos últimos dois anos.

Qualquer país que olharmos vai usar desinformação. Isso prova que é um fenômeno global. Há uma variação, de país a país, de institucionalização, de estratégias. Mas o preocupante é que é uma prática que se disseminou no mundo inteiro, que passou de algo completamente amador para algo profissional, institucional, permanente. Esse grau de especialização preocupa muito.

A pesquisa diz que o Brasil tem uma “tropa virtual” de capacidade média. O que isso significa?

Nos países de alta capacidade, como China e Estados Unidos, você tem o uso institucional de “guerra informacional”. A escala nesses países é impressionante: tem uma estrutura permanente de produção de desinformação, múltiplos contratos (de empresas) e o uso dessa estratégia com fins bélicos, seja na política interna, seja para influenciar outros países. No Brasil, não identificamos o uso para influência externa nem nenhum documento para comprovar que a estrutura de campanha fosse permanente ou com estrutura organizacional refinada. Aqui, é algo grande, custoso, mas não é uma operação militar. Essa pesquisa tem que ser entendida como o mínimo, a ponta do iceberg. O que está embaixo é muito maior, mas só olhando a ponta a gente consegue entender que o problema é muito grave.

'Permanente'

“Qualquer país vai usar desinformação. Isso prova que é um fenômeno global. Há uma variação, de país a país, de institucionalização, de estratégias. Mas o preocupante é que é uma prática que se disseminou no mundo inteiro, que passou de algo completamente amador para algo profissional, institucional, permanente.”