O globo, n.31373, 30/06/2019. Artigos, p. 02

 

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Merval Pereira 

30/06/2019

 

 

O que está acontecendo hoje no Brasil, com a campanha contra a Operação Lava-Jato e o exjuiz Sergio Moro, ocorreu na Itália contra a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite), que combateu um sistema político corrupto e acabou, ao final, perdendo a parada.

O livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, coordenado pela economista Maria Cristina Pinotti, uma estudiosa da correlação entre as duas operações, mostra bem o que houve na Itália e o que está acontecendo entre nós. Logo na apresentação, a economista ressalta que “só a pressão da sociedade poderia impedir que os políticos no Brasil tivessem sucesso em por fim à Lava Jato”.

Ela cita que já houve várias tentativas de cercear a Lava-Jato, entre elas, o projeto de abuso de autoridade, que acabou sendo aprovado recentemente pelo Senado, depois do livro publicado.

O texto final do projeto pode ser compreendido como uma vitória da pressão da sociedade, pois foi bastante amenizado. Mesmo assim, ainda representa ameaça às investigações, segundo os procuradores de Curitiba.

Os senadores deixaram mais claro que as condutas abusivas serão consideradas crime apenas quando praticadas para “prejudicar” ou “beneficiar” a outros ou a si mesmo, ou quando os juízes e membros do Ministério Público agirem comprovadamente “por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Mas, juntamente a este projeto, foi aprovado outro, com as medidas contra a corrupção, apresentado pela Associação Nacional dos Procurados da República, uma iniciativa popular com mais de 1,7 milhão de assinaturas de cidadãos. Deformado pela Câmara, o projeto original teve sua essência mantida pelo Senado: estabelece como crime o caixa dois e aumenta a pena de crimes de corrupção, tornando-os hediondos em vários casos.

O crime de hermenêutica, ou seja, de interpretação da legislação, foi retirado do texto aprovado pelo Senado, que também excluiu dispositivos como as penas escalonadas propostas na Câmara, com a dosimetria de acordo com o montante roubado.

A unificação nas regras de prescrição num prazo de dez anos também foi retirada do texto. E vários pontos que constavam da proposta original e haviam sido removidas na Câmara voltaram ao texto final. Agora, a Câmara voltará a analisá-lo. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, no prefácio do livro, pontua que “se há uma novidade, no Brasil, é uma sociedade civil que deixou de aceitar o inaceitável. A reação da cidadania impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência”.

Para ele, os textos dos ex-magistrados Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo, incluídos no livro, ajudam a estabelecer uma comparação com o que se passou na Itália. Lá, a reação oligárquica da corrupção contra a Operação Mãos Limpas (levada a efeito na década de 90, entre 1992 e 1996) teve sucesso, adverte Barroso.

A classe política, para preservar a si e aos corruptos, enumera Barroso: (i) mudou a legislação a fim de proteger os acusados de corrupção, inclusive para impedir a prisão preventiva; (ii) reduziu os prazos de prescrição; (iii) aliciou uma imprensa pouco independente e (iv) procurou demonizar o Judiciário. E tudo acabou na ascensão de Silvio Berlusconi, adverte.

“Não foi o combate à corrupção, mas o não saneamento verdadeiro das instituições que impediu que a Itália se livrasse do problema”. Não por acaso, diz Barroso, por não ter aprimorado suas instituições, a Itália é o país que apresenta o pior desempenho econômico e os mais elevados índices de corrupção entre os países desenvolvidos.

"Tenho fé que isso não acontecerá no Brasil, por pelo menos três razões: (i) sociedade mais consciente e mobilizada; (ii) imprensa livre e plural; e (iii) Judiciário independente (apesar de ainda ser extremamente leno e ineficiente) e, sobretudo nas instâncias ordinárias, sem quaisquer laços políticos".